segunda-feira, 20 de junho de 2011

Entrevista: Silvio de Abreu

“Passione” terminou no início do ano com índices de audiência altíssimos em suas últimas semanas. As histórias de Totó, Fred e Clara caíram na boca do boco. Mérito total do autor Silvio de Abreu que sabe engendrar uma história policial, cheia de suspense, romance e reviravoltas como ninguém. Gentilmente, como sempre, nos concedeu uma entrevista onde fala de sua carreira como autor, das novelas que escreveu e dos personagens que criou. Vale a pena ler diversas vezes!


Suas primeiras incursões na televisão foram como ator, trabalhando em novelas como “Os estranhos” e “A próxima atração”. Quais as melhores (e piores) lembranças que você guarda desta época?
A melhor foi conhecer e contracenar com atores como Sergio Cardoso, Cacilda Becker, Cleyde Yáconis, Fernanda Montenegro, Natalia Timberg, Glória Menezes, Tarcisio Meira, Francisco Cuoco e tantos outros. A pior foi o trabalho em si, porque eu não tinha o menor talento para a profissão.

Sua primeira novela foi “Éramos seis”, escrita em 1977 na Tupi com Rubens Ewald Filho. Na época, a concorrência entre Tupi e Globo andava bem acirrada e a emissora carioca exibia no mesmo horário de “Éramos seis” a novela “Locomotivas”, um arrasa-quarteirão de Cassiano Gabus Mendes. Como foi esta primeira experiência? Para você, qual foi a repercussão da novela? No remake produzido pelo SBT, você teve alguma participação no texto?
Quando pegamos o horário das sete na Tupi, a audiência era de 4 pontos, contra As Locomotivas de Cassiano Gabus Mendes, na Globo. Mas Éramos Seis agradou muito ao público então a Tupi fez uma estratégia inédita na época, esperava acabar a novela da Globo e colocava Éramos Seis logo em seguida. Publicou até grandes anúncios nos jornais onde dizia: A rede Tupi atrasou Éramos Seis para que vocês não percam As Locomotivas. O resultado foi excelente, quando Éramos Seis saiu do ar tinha 25 pontos de audiência. O texto do remake era o mesmo escrito para a primeira versão, as mudanças foram mínimas.

Sua estréia na Globo foi altamente conturbada. “Pecado rasgado” foi uma novela sem grande repercussão por parte do público e, na época, os jornais ventilaram brigas entre você e o diretor da trama, Regis Cardoso. Como sobreviver a uma crise como esta?
Com coragem e determinação. Foi um período muito difícil e desagradável. É quase impossível fazer uma novela acontecer quando a direção não entende o texto e o espírito do autor. Foi um grande desencontro, que resultou em um pedido de demissão da minha parte.

Você trabalhou com grandes novelas da teledramaturgia nacional. Em “Plumas & paetés” e “Sétimo sentido”, você substituiu os autores Cassiano Gabus Mendes e Janete Clair, respectivamente. Como surgiram estas oportunidades, de que modo você se organizou para tais trabalhos e que experiências resultaram disso?
Eu havia pedido demissão da Globo e voltado a escrever e dirigir para o cinema. Estava terminando Mulher Objeto, meu quinto filme, quando fui procurado porque Cassiano Gabus Mendes sofrera um enfarto e me indicara para continuar Plumas & Paetês. Embora estivesse resolvido a não mais fazer novelas, não pude recusar dada a importância da indicação e o respeito que sempre dediquei a ele, apesar de ainda não conhecê-lo pessoalmente. Este trabalho foi o responsável por avivar a minha vontade de escrever novelas. Foi por causa dele que Janete Clair, a quem eu também não conhecia pessoalmente, me indicou para escrever As Quatro Marquesas, que resultou em Jogo da Vida, meu primeiro sucesso na Globo. Quando escrevia Sétimo Sentido, Janete foi diagnosticada com um câncer no intestino e me pediu ajuda. Embora muito doente e operada, ela jamais deixou de escrever a novela, nós fazíamos os capítulos alternadamente. Aprendi muito com a nossa grande dama das novelas e ainda tive o prazer de conviver com uma das mulheres mais generosas e inteligentes que conheci.

Quais são as influências do cinema e da literatura (autores, obras, personagens) em suas obras?
Na literatura: Dashiell Hammett; Agatha Chistie, James M. Cain, John Steinbeck; Raymond Chandler, Patrícia Highsmith, Fiedor Dostoiewsky, Aluizio de Azevedo, Érico Veríssimo; no teatro: Nelson Rodrigues, Abílio Pereira de Almeida; Arthur Miller, Tennesse Williams, Eugene O’ Neil, Bertold Brecht, Anton Tchekhov; no cinema: Billy Wilder, Federico Fellini, Woody Allen, Pedro Almodóvar, Cesare Zavattini e , claro, Alfred Hitchcock, que não escrevia mas sabia muito bem como um script deveria ser feito.

“Torre de Babel” foi uma novela muito polêmica. Você tratava de temas que incomodaram o público e teve que modificar algumas dessas tramas. O que foi que mudou da sinopse original da novela?
Quase nada foi modificado da sinopse original. O fato de eu não ter feito personagens maniqueístas deixou o público confuso, por isso resolvi mostrá-los melhor aos telespectadores, antes da explosão do shopping, que marcava o inicio do segundo ato da novela. É falsa a idéia de que aproveitei essa explosão para eliminar os personagens que o público não gostava e mais falsa ainda a idéia de que a explosão foi inventada para aumentar a audiência da novela, mas já falei muito disso em inúmeras entrevistas, chega.

Conte um pouco o processo de criação de “As Filhas da Mãe”. É verdade que você escalou primeiro o elenco todo para depois criar os personagens?
A Incrível Batalha das Filhas da Mãe no Jardim do Éden, como o título já demonstrava, era uma novela inusitada em todos os sentidos. Os personagens foram criados para aproveitar os excelentes atores-comediantes, que estavam contratados sem serem devidamente utilizados pela programação. Criei cada personagem baseado nas características de cada um deles e quando não pude contar com todos os propostos, aconteceu um desequilíbrio na escalação, que prejudicou a unidade e o resultado geral do trabalho.

Escrever um personagem para um determinado ator e depois ele não poder fazer a novela não é um risco muito grande?
É um risco enorme, por isso sempre que acontece, adapto o personagem ao ator que vai criá-lo junto comigo. Televisão não é como teatro, quando o ator tem meses de ensaio para elaborar um personagem que fica duas horas em cena, nem como cinema, quando o diretor tem tempo de burilar a interpretação de um ator. Em uma novela de duzentos e tantos capítulos, tendo que decorar mais de 50 cenas por semana, quanto mais perto do interprete for o personagem, melhor o resultado.

Como teria sido a personagem Ana de “A Próxima Vítima” se tivesse sido feita pela Regina Duarte, conforme previsto inicialmente? E a Romana que seria feita por Fernanda Montenegro? Você mudou um pouco o perfil dessas personagens por conta da mudança de escalação?
Regina e Suzana não são atrizes muito diferentes. Ambas são talentosas, bonitas, carismáticas, têm um temperamento romântico, são formadas pela televisão e protagonizaram muitas mocinhas e também muitas mulheres de temperamento forte. Foi uma transição calma e de excelente resultado. A Romana de Fernanda Montenegro seria mais velha do que a de Rosamaria Murtinho, mais enérgica e menos romântica, mas no quesito talento, nos dois casos era compatível.

Ainda sobre “A Próxima Vítima”, desde o primeiro momento, na sinopse original, o serial killer seria mesmo o Adalberto (Cecil Thiré) ou você tinha algumas cartas na manga?
Não tinha nenhuma carta na manga, por isso era imprescindível guardar o segredo. O meu maior trabalho em A Próxima Vitima não foi escrever a novela, foi despistar a imprensa. Para o final alternativo mostrado em Portugal e no Vale a Pena Ver de Novo, tive que suprir muitas informações de inúmeros capítulos, mas não é o meu final preferido, gosto da história original.

Na época de “Belíssima”, você declarou que estava abismado com a inversão de valores do brasileiro. Os telespectadores torciam muito pelo personagem André (Marcello Anthony), um mau-caráter. Poucos anos depois, como você avalia a reação do público neste caso? Em “Passione”, houve casos semelhantes?
A reação do público continua a mesma. Hoje em dia o que faz o público se apaixonar por um personagem é a sua determinação em conseguir os seus objetivos, seja por que métodos forem. Infelizmente, a crença vigente é que o fim justifica os meios, não importando o caráter.

Meses após o término de “Passione”, tem alguma coisa que você faria diferente nessa novela? Teve que mudar algum rumo de personagem ou tudo ocorreu conforme o previsto inicialmente?
Adorei ter escrito Passione. Foi das novelas mais prazerosas que tive a felicidade de fazer. O elenco era impecável, a direção talentosíssima, a produção esmerada e tudo transcorreu numa incrível paz durante os 209 dias em que a novela esteve no ar. Todos os envolvidos ficaram super satisfeitos e recompensados com o trabalho e conseguimos altíssimos índices de audiência em uma época super difícil como Natal, Ano Novo e início do Ano. Era mais do que delicioso andar pela rua e ser abordado pelo publico que agradecia o bom entretenimento que estava recebendo diariamente em suas casas. Não tive que mudar nada de significativo do que estava planejado para a novela, tudo o que foi previsto foi executado com muito esmero e talento.

Em “Passione”, a imprensa deu muito trabalho, pois acabou divulgando algumas das surpresas que você reservou para a trama (como a volta de Totó, interpretado por Tony Ramos). Como lidar com a imprensa, importante para a divulgação da telenovela, mas também sabotadora?
Não existe novela de sucesso sem a imprensa registrar e acompanhar o trabalho. Tudo o que acontece durante uma novela é importante que seja divulgado para o bem da própria novela. Porém, atualmente, a imprensa “dita” especializada não está interessada em divulgar a história, mas sim em criar fatos e acontecimentos retumbantes. Já é uma norma ler nas revistas especializadas manchetes absolutamente mentirosas e desrespeitosas com o trabalho e, principalmente, com o público. São puras invenções, sem a menor base de verdade. Mas isso é um sinal do nosso tempo, onde ética, respeito e honestidade, formam um trio de palavras sem muito significado hoje em dia.

Carolina Dieckmann foi execrada pela mídia e ainda disseram que Diana morreu por conta das críticas que a atriz sofreu. A que você atribui essa rejeição? E como você vê esse tipo de comportamento da mídia?
Acho nocivo e desrespeitoso. Carolina Dieckman fez um excelente trabalho em Passione. A rejeição, se houve, foi ao personagem que trocou um amor pelo outro e nesse caso a culpa é minha e não dela.

Ao longo das décadas de 1990 e 2000 você passou a supervisionar trabalhos de novos novelistas, como Maria Adelaide Amaral e João Emanuel Carneiro. De que forma você trabalha com estes novos autores na televisão? Você acredita que esta prática consegue suprir a necessidade da TV de novos autores, temáticas e linguagens?
Acho que é uma maneira eficiente de descobrir e estimular novos autores. O importante é respeitar a idéia e o estilo deles, sem querer que sejam cópias minhas. Desde que faço este trabalho tenho revelado excelentes profissionais como Carlos Lombardi, Beth Jhin, Andréia Maltaroli e os que você citou. Não ensinei nenhum deles a escrever, simplesmente estimulei o talento que já lhes pertencia. Para escrever uma novela é necessário, além de talento e vocação, a capacidade de raciocinar a história como uma trama especificamente para novela. Escrever uma novela é completamente diferente de se escrever um livro, um roteiro, uma peça de teatro, uma sitcom ou um seriado. É um trabalho muito complicado, altamente especializado, que vai além do talento de juntar as palavras certas para contar uma história.

Como é sua rotina de trabalho quando está com uma novela no ar? E como é feita a divisão de trabalho com seus colaboradores?
Levanto ás 6:30 ou 7:00 horas, tomo café, sento no computador, paro para almoçar, volto a escrever, paro para assistir o capítulo do dia, volto a escrever e só saio do computador com o capítulo terminado. Cada capítulo é diferente, embora tenha o mesmo número de páginas. Alguns saem em 10 horas outros em 15, nunca se sabe. Escrevo sempre a sinopse e os 24 ou 30 primeiros capítulos absolutamente sozinho. Depois desenvolvo o andamento da história cena a cena, meus colaboradores fazem os diálogos e faço a revisão geral, acrescentando ou retirando o que me parecer necessário em cada cena.

Você assiste novelas? Quais novelas te marcaram? Quais tem assistido ou dado pelo menos uma olhada atualmente?
Assisto e gosto, aliás sempre gostei, mesmo quando não escrevia. Vale Tudo, Que Rei Sou Eu, Mulheres de Areia, Escalada, Pecado Capital, O Bem Amado, Nino, o italianinho, A Outra Face de Anita, só para citar algumas. Atualmente vejo sempre que posso Cordel Encantado e Morde & Assopra e mais regularmente Insensato Coração.

Dentre os seus trabalhos, qual a novela que você mais gosta? E quais personagens você tem orgulho de ter criado?
Não sei responder essa pergunta. Gosto de quase tudo o que fiz e tenho um imenso orgulho de ter criado personagens que contribuíram para revelar ou avançar a carreira de inúmeros e talentosos atores.

Você já escreveu alguns dos espetáculos musicais de Claudia Raia (“Não fuja da Raia”, “Nas Raias da loucura” e “Caia na Raia”) e uma peça de teatro (“Capital estrangeiro”). Como foi a experiência? Tem vontade de escrever novamente para o teatro?
Como experiência foi ótimo. Os três shows e a peça foram sucesso. Às vezes penso em escrever para o teatro, como também penso em voltar a escrever e dirigir para o cinema, mas confesso que tenho um enorme prazer em trabalhar em televisão, principalmente em novelas, e como é um oficio muito absorvente, não sobra tempo para outras atividades.

Depois de quase quarenta anos como autor de telenovelas, o que você aconselharia a um jovem autor que está iniciando sua carreira? Quais referências e formação ele deve buscar?
Em primeiro lugar deve gostar realmente do oficio e não ficar buscando o sucesso ou o prestigio que possa eventualmente vir a conseguir. Sucesso e prestígio são o resultado de muito trabalho e dedicação, não caem do céu e nem sempre são conseguidos mesmo por autores talentosos e dedicados. Não existe bula. O que vale é o trabalho em si, esta é a única recompensa certa. O mais importante, para quem tem certeza de que quer abraçar esta empreitada, é acreditar em si, não esmorecer, se preparar e estar apto quando a primeira oportunidade chegar. Antigamente tínhamos na Globo um grupo que lia trabalhos enviados por pessoas interessadas em escrever. Isto acabou pelo excesso de processos absurdos e desonestos que a emissora e os autores foram obrigados a responder. Eu mesmo fui processado várias vezes por pessoas que diziam estarem sendo plagiadas. Vencemos todos os processos, mas o desgaste foi enorme e por causa desses aproveitadores hoje, pelo menos na Globo, não tem como um trabalho de alguém desconhecido ser apreciado. O único conselho que posso dar é que tentem outras mídias e quando conseguirem aparecer tentem a novela, ou esperem a abertura dos cursos que periodicamente a Globo faz para novos autores e tentem uma vaga.

Uma de suas marcas é a cidade de São Paulo sempre presente em suas novelas. Mas, depois de trinta anos, ainda é possível representar a cidade de formas novas ou interessantes?
São Paulo é uma imensa cidade que se renova sempre. Novos lugares, novas paisagens, novas tribos. É sempre possível achar novidades interessantes numa cidade cosmopolita como a nossa.

Há muitos anos, especialistas, críticos, estudiosos e fifis se debatem por causa de uma suposta crise de audiência da televisão (que, obviamente, também atingiria a telenovela). Qual é a sua análise sobre o assunto? Esta crise existe? Para você, quais são os fatores que a originariam? É um assunto relevante ou é apenas do interesse dos executivos de TV e anunciantes?
Quando comecei a trabalhar em novela, ainda como ator, em 1967, já diziam que a novela estava em crise e que iria acabar. Em 1977, quando comecei a escrever novelas, a conversa era a mesma. Escrevo novelas há exatos 34 anos e agora o assunto voltou à baila. Digam o que disseram a novela ainda é o produto de maior audiência da televisão brasileira e um firme alicerce para qualquer emissora que consiga uma trama de sucesso. É o único programa que garante uma audiência cativa por 6 dias da semana e impulsiona um enorme mercado de trabalho para atores, diretores, autores, produtores, técnicos, sem contar as inúmeras publicações que vivem dela. O que caiu de audiência, não foi a novela, foi a televisão como um todo. Belíssima era uma novela que registrava 45/50 pontos de audiência diariamente e os números de Passione eram 35/40, porém ambas davam em média 65% de share, que é o número calculado levando em conta os aparelhos ligados. Além disso, o blog de Passione tinha mais de dois milhões de acessos diários, fora os acessos para assistirem aos capítulos no You Tube. Não sei como é possível se falar em crise de um produto diante desses resultados.

Em uma entrevista para a TV Cultura, na época da estréia de Belíssima, você disse que a TV é feita para vender, ou seja, a cada quinze minutos, a telenovela é interrompida para se anunciar sabão em pó, massa de tomate, etc. Você acredita que é possível encontrar um coeficiente entre arte e comércio?
Claro que sim, a novela e as minisséries estão aí para provar isto. O grande sucesso da novela brasileira aqui e no mundo é justamente por causa de seu teor artístico. Diferente das novelas americanas, mexicanas ou venezuelanas que mantém sempre o mesmo tipo de trama e de história, cada um dos nossos principais autores escreve dentro de um estilo próprio, com universos originais e personagens diferenciados.

Em “Guerra dos sexos”, Paulo Autran teve com Otávio um dos personagens mais marcantes em sua careira. Repetida a dobradinha em “Sassaricando”, o ator teria reclamado na época e, encerrada as gravações, nunca mais participou de uma telenovela. Houve de fato este problema? Como trabalhar com atores excelentes, mas com egos nem sempre maleáveis?
Paulo Autran sempre fez questão de desprezar a televisão em favor do teatro, mas isso nunca diminuiu o seu talento ou a importância de suas atuações em novelas. Sempre tive um grande sentimento de gratidão a ele, à Fernanda Montenegro, à Gloria Menezes e a Tarcisio Meira, que apostaram em uma empreitada arriscada como foi a novela Guerra dos Sexos. Em Sassaricando, Paulo Autran estava em um momento delicado de sua vida pessoal e talvez isso tenha sido o motivo de seu desencanto. Tenho trabalhado sempre com atores excelentes e famosos e raramente tive problemas de ego.

O remake de “Guerra dos Sexos” vai realmente sair do papel? Você vai escrevê-la ou vai supervisioná-la?
Vou reescreve-la, a novela é excelente, mas de 1983 para cá a guerra entre homens e mulheres mudou muito e a novela não pode ficar defasada.

Como você define o estilo autoral de Sílvio de Abreu?
Entretenimento é a palavra. Faço novela para divertir, emocionar, entreter as pessoas, para que elas tenham um produto de qualidade, diariamente, em suas casas. Se além disso ainda conseguir colocar algum questionamento em suas cabeças, alguma idéia ou conceito, já vou me sentir mais do que recompensado.

O que achou do blog? Tem algum recado para nossos leitores?
Acho o blog excelente. Atualmente não existe nem na internet, nem nos jornais, salvo raras e bem vindas exceções, quem faça crítica consciente de televisão. O que temos, na grande maioria, são colunistas de fofocas que se dão ao direito, por terem espaço nos jornais e nas revistas, de emitirem opiniões pessoais, como também fazem os internautas. Parece que, diferente de quem abalizadamente critica cinema, teatro ou literatura, quem fala sobre televisão não entende do assunto e ainda tem o prazer mórbido em desmerecer o trabalho dos profissionais. Muitas vezes criticam baseados no lêem nas colunas dos colegas, sem checarem a veracidade da informação, aumentando os boatos. A impressão que se tem é de que não assistem às novelas, se baseiam nos resumos publicados e nas fofocas. É uma tremenda falta de respeito. Para se fazer uma crítica, é necessário um profundo conhecimento e entendimento do que se critica e não, simplesmente, emitir opiniões vazias e dar palpites, na maioria das vezes, tentando recompensar informantes das colunas ou penalizar quem não concorda com essa prática. Parabéns pela competência, honestidade e isenção com que o blog está sendo levado. 
(por Beatriz Villar)

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O papel de cada um

Tenho lido em muitos blogs e em algumas páginas de jornal que “estariam” preocupados com certa semelhança entre a personagem Dulce (Cássia Kis Magro), de “Morde & assopra”, e Griselda (Lília Cabral), de “Fina estampa”. Não é a primeira vez que vejo uma notícia na mesma seara envolvendo “Fina estampa”. Há algumas semanas, dizia-se que “estariam” apreensivos, pois, tanto nesta novela quanto em “Vidas em jogo”, os personagens se beneficiariam de um prêmio de loteria. Fico alerta ao perceber que uma produção já recebe algumas críticas, principalmente por coincidências, apesar de só estrear no final de agosto.

Quanto às semelhanças (que, na realidade, soam como “plágio” ao espectador mais distraído), é forçoso afirmar que todas as tramas são irmãs entre si, em maior ou menor fidelidade. O conceito parte do princípio de originalidade, o que não é possível em um veículo presente em nosso país há sessenta anos. Mesmo em grandes novelas como “O clone” (2001/02). Então, dirá o meu caro leitor: “Mas a inserção de um clone em uma novela é original, não é?”. Sim, é original e foi proporcionada por inovações científicas... Porém, não te esqueças de que a função do clone na história é a mesma presente em novelas como “Mulheres de areia”: a simbologia do “outro”. Portanto, ainda que venha com forma atualizada, temos um tema sobre o qual os gregos, seis séculos antes de Cristo, já versavam.

E mesmo havendo pontos em comum, o que se discute hoje em dia não é a “originalidade”, a faísca de uma nova ideia, mas novas formas de se tratar um mesmo assunto. Por uma breve sinopse de “Fina estampa” que circula entre as notícias (desculpe-me, Aguinaldo Silva, se eu cometer algum equívoco nas informações de sua próxima novela), Griselda (Lília Cabral) é uma mulher do povo, lutadora que cria seus três filhos com o trabalho de “marido de aluguel”, já que o seu esposo sumiu há muitos anos. Um dos filhos, a ser interpretado por Caio Castro, estuda medicina para ser um cirurgião plástico e tem vergonha da mãe. Por um acaso do destino, depois de algumas peripécias (que, mesmo que soubéssemos, não revelaríamos, pois não estamos aqui para jogar sujo com os autores), Griselda ganha na loteria. Como se pode notar, o único contato entre Griselda e Dulce é sustentar filhos que sentem vergonha da origem humilde. É o mesmo ponto de partida.

Entretanto, em uma análise um pouco mais profunda (mesmo nunca tendo lido a sinopse original de “Fina estampa”, o que torna estas linhas de certo modo precipitadas), podemos comentar que Griselda é uma personagem mais solar, dona de suas rédeas e atuante, fazendo dela a protagonista de sua história. Já Dulce é uma mulher muito humilde, com um imenso complexo de inferioridade, modesta, devotada ao filho e sem nenhum amor próprio (sendo este o gancho para toda a humilhação que sofre de Guilherme, interpretado por Klebber Toledo). Enquanto Dulce nos dá vontade de carregá-la em nosso colo até suas decepções se abrandarem, Griselda nos dá gana de segurar em suas mãos para seguir de cabeça erguida na batalha que é viver. Uma simples (porém, fundamental) diferença de intenção e tom.
  
É necessário que vejamos o gênero telenovela com olhos analíticos. Tanta coincidência assim pode ter origem em um único fato, que acaba desestruturando muito a qualidade: o tamanho das novelas. Durante as décadas de 1960, 1970 e 1980, as tramas eram escritas por um autor-solo (ou, quando muito, dois autores, principalmente do meio para o final dos anos 80). As histórias tinham menos capítulos (a média era por volta de 150, 160 capítulos) e a duração de cada capítulo era muito menor (mesmo na época em que a Globo produzia novelas como “Selva de Pedra”, com 243 capítulos, cada um durava por volta de 25 minutos-arte...). Hoje, apenas para a redação de uma telenovela montam-se equipes de quatro a nove, dez profissionais, incluindo o autor da trama (o que dilui a autoria). Glória Perez é exceção.

Para dar cabo à produção de telenovelas, é imprescindível armar-se dos mais variados estratagemas para manter a trama por tanto tempo. Para tal, o autor é obrigado a lançar mão de mais e mais peripécias, dando gás ainda maior aos seus personagens. Entope-se de falsos clímaces... Não à toa, Cristiane Fridmann, ao iniciar “Vidas em jogo”, já declarou que sua novela não terá mais do que 200 capítulos. Atualmente, para os executivos de televisão (de todas as emissoras, sem exceção), parece que uma boa trama não é mais uma história contada de maneira interessante, envolvente, gerando assim grande repercussão e consequente lucro financeiro. Uma boa novela é aquela que atrai um vistoso número de audiência e consegue faturamento, patrocínio e merchandising. Diante de tamanha pressão, logicamente os autores acabarão cometendo algumas coincidências e semelhanças. Tantos cabriolés eletrônicos só interessam a um único lado: o das emissoras.

Cabe ao telespectador ter uma visão mais crítica de todo este cenário. Lauro César Muniz tem bradado aos quatro ventos que a novela deveria ter, no máximo, 120 capítulos, recheadas de menos tramas, porém mais densas. Por enquanto, poucos ecos (geralmente de roteiristas) tem encontrado o apelo de Lauro. O público pode ser mais atuante e exigir uma teledramaturgia mais forte, inteligente e com nossa roupagem (entrando aqui todo tipo de regionalismo). Selecionar mais o que é bom do que não presta (inclusive no que se noticia sobre novelas). Em alguns poucos momentos temos feito tal reivindicação, mas deveríamos optar mais por tal luta. Merecemos uma teledramaturgia de constante qualidade superior e nossa televisão tem todas as condições para realizar um belíssimo espetáculo (não é qualquer país do mundo que conta com diretores, atores, autores e técnicos com o quilate dos nossos...).

Por fim, mesmo depois de alguns dias escrevendo este artigo e localizando o papel de cada um neste cenário atual das telenovelas (com ponto de partida um factoide corriqueiro), sinto que há alguma questão pendente, mas que não encontro uma resposta lógica que a satisfaça: qual interesse tem a imprensa (que vive da indústria da telenovela) em julgar, denegrir, menosprezar ou diminuir uma trama antes mesmo da exibição de seu primeiro capítulo?

Alguém tem a resposta?

(por Jordão Amaral)

domingo, 5 de junho de 2011

O tão falado beijo gay

Com algumas semanas de atraso, resolvi comentar sobre o tão falado beijo gay que voltou às pautas por conta da cena de Luciana Vendramini e Gisele Tigre em “Amor e Revolução”. Não comentei antes, porque sempre achei essa questão de beijo gay muito mais um golpe de mídia do que uma necessidade dramatúrgica.

Vou começar de trás para frente até chegar onde eu quero. O remake de “Ti Ti Ti” foi uma das poucas, se não a única, que desenvolveu, de fato, uma trama de amor entre dois personagens gays. Em todas outras novelas que existiam personagens gays, o único DNA do personagem era “ser gay”, como se a opção sexual do personagem fosse a única função que ele deveria trazer. Não foi isso que aconteceu na novela de Maria Adelaide Amaral. O grande conflito do Julinho (André Arteche) não era ser gay, mas, sim, superar a morte de seu grande amor, Osmar (Gustavo Leão), e reencontrar a felicidade. Além disso, tinha como outras funções superar as barreiras do preconceito de sua própria família, fazer Bruna (Giulia Gam) e Gustavo (Leopoldo Pacheco) aceitarem as diferenças e a opção sexual do filho já morto, ser o melhor amigo de Marcela (Ísis Valverde), ser uma das primeiras pessoas a desconfiar do caráter de Luíza (Guilhermina Guinle) e bater de frente com ela, e ainda transitar no núcleo da revista Moda Brasil.

Quando Julinho se envolveu numa conturbada relação com Thales (Armando Babaioff), ninguém estava interessado em ver um beijo gay entre os dois, mas, sim, no desenvolvimento dessa história de amor, que era tão intensa e verdadeira quanto a história de amor de Marcela e Edgar (Caio Castro), por exemplo. Sim, mas se Marcela e Edgar podiam se beijar em cena, por que Julinho e Thales não poderiam? Porque a mágica da relação de amor dos dois se perderia em torno do golpe midiático do primeiro beijo gay.

Em “América”, novela de Glória Perez, o maior conflito de Júnior (Bruno Gagliasso) era enfrentar o preconceito da mãe e se assumir homossexual. Isso se desenrolou praticamente até a reta final, quando o peão Zeca (Erom Cordeiro) chegou à fazenda da Viúva Neuta (Eliane Giardini) e se apaixonou por Júnior. Fez-se um escarcéu em torno do beijo gay, gravado e repetido sete vezes, e que acabou não indo ao ar, o que gerou frustração. E essa expectativa seguida de frustração acabou fazendo com que as pessoas não reparassem na linda cena dos personagens se olhando com tamanha paixão. O beijo ali não era necessário, o olhar de ambos – que são ótimos atores – já diziam absolutamente tudo. E o público não estava interessado em quebrar tabus, acabar com o preconceito, mas ver o galã Bruno Gagliasso dar um beijo homossexual na televisão.

Agora foi a vez de “Amor e Revolução”. Desde antes da novela estrear, o autor já vinha mandando recados à imprensa que poderia haver, sim, um beijo gay na novela. Só o fato de se fazer esse alarde já mostra que o beijo não seria uma necessidade dramatúrgica. Tanto se falou, a imprensa divulgou à exaustão a notícia que, de fato, o beijo gay aconteceu entre as personagens Marcela (Luciana Vendramini), jornalista homossexual, e Marina (Gisele Tigre), heterossexual. A cena foi até que interessante, bonita, mas se perdeu por ser longa demais e entrar num discurso pós-beijo sobre relação homossexual, bem ao estilo Tiago Santiago.

E para provar a minha tese de golpe midiático, parece que o autor já prometeu um beijo gay entre os personagens de Carlos Thiré e Lui Mendes. Como o primeiro beijo gay deu Ibope, vão, então, investir num beijo gay e até, de repente, numa cena de sexo/amor entre as duas mulheres. Não por uma necessidade dramatúrgica ou por quebrar tabus e lutar contra o preconceito, mas, sim, por audiência. Tanto isso é verdade que o autor pediu à emissora que, antes de ir ao ar a próxima cena de beijo gay, o espectador seja avisado do que acontecerá por conta do público conservador. Ora, se a função do beijo gay na televisão fosse realmente social, é justamente esse público conservador que teria que assisti-lo, ser envolvido por aquela situação dos personagens, embarcar e ser surpreendido pelo beijo. Seria uma forma de mostrar às pessoas que o amor entre iguais é tão verdadeiro quanto o amor heterossexual. No entanto, fica-se mais do que claro que essa não é a real intenção. Ou estou errado?

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Entrevista: Denise Del Vecchio

Denise Del Vecchio é uma atriz como poucas: inteligente, educada, atenciosa e muito talentosa. Tudo isso pode ser comprovado a partir da entrevista que ela nos concedeu. Conhecer um pouco mais sobre essa atriz fascinante é simplesmente maravilhoso.


Ser atriz para você é dom, técnica, vocação, necessidade ou tudo junto?
É quase isso tudo e mais um pouco. Talento, vocação, teimosia, renúncia, técnica, desejo, sorte e amor pelo outro.

Dentro de sua experiência, o que é arte para você? Qual é a função do ator em uma sociedade como a nossa, onde a cultura tem sido cada vez mais banalizada perante o produto, o comércio e o lucro?
Há milhares de teorias sobre a arte e sua função na sociedade, mas você me faz a pergunta a partir da minha experiência. Vamos lá. Quando comecei minha vida no teatro, acreditava firmemente que o teatro poderia mudar o mundo. Doce ingenuidade. Hoje sei que qualquer manifestação artística só muda quem quer se transformar. Quem partilha com o artista a obra, qualquer que seja ela. Um espetáculo, uma música, um quadro, uma escultura, um filme, um livro, dependem dos olhos de quem vê, dos ouvidos de quem ouve, do coração de quem sente e da cabeça de quem pensa. Todas as manifestações artísticas são recortes do tempo ao qual elas pertencem. Interpretações de nós mesmos e da sociedade onde ela é produzida. Se existe uma função para isso é nos lembrar nossa condição de seres humanos e sociais e refletir sobre ela para, quem sabe, nos tornamos melhores.

Proust acreditava que a leitura realizada na infância marcaria o gosto daquele leitor na idade adulta. Revertendo um pouco a teoria do romancista francês, você acredita que a paixão que seus pais tinham pelo cinema marcaria a atriz que hoje você é? Se há tal influência, ela foi consciente?
Só gostamos do que conhecemos. Houvesse nas famílias e nas escolas maior empenho em envolver crianças com o teatro, a música, artes plásticas etc., mais adultos teriam necessidade de produzir e consumir arte. Poderiam ter uma vida mais criativa. Minha mãe gostava muito de cinema, sim, e eu pude assistir muitos filmes maravilhosos na minha infância, mas só entrei num teatro pelas mãos do professor Gáudio, que tinha como matéria oficial geografia, mas ensinava também artes e relacionamento. Nunca me imaginei na tela do cinema. Era virtual demais pra minha cabecinha, mas, ao entrar pela primeira vez no Teatro Municipal de São Paulo e assistir a montagem do TUCA de “Morte e Vida Severina”, comecei a me imaginar lá em cima, no palco. Foi amor à primeira vista. Quando comecei a estudar teatro não imaginava que seria uma atividade profissional.

Conte um pouco para nós sobre sua formação artística.
Do colégio estadual Alberto Conte, no bairro de Santo Amaro, SP/SP., fui para a faculdade de História na USP. Paralelamente, comecei a estudar teatro com Emilio Fontana no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) de São Paulo. Desse curso fui para o Teatro de Arena de São Paulo, para outro curso com Augusto Boal, Cecília Thumin e Heleny Guariba. A partir dessa turma, alguns alunos ficaram no teatro de Arena fazendo parte do Núcleo Dois do Teatro e foi desse Núcleo que segui carreira. Não tive uma formação acadêmica, porém aprendi que cada espetáculo, cada autor, cada diretor exige profundo estudo de todos os aspectos que envolvem uma montagem. Toda a primeira fase de minha carreira foi baseada no trabalho de Grupo. Foi um trabalho intenso de pesquisa em todas as áreas. Escrevíamos o texto baseados em pesquisa e improvisação, dirigíamos, atuávamos, criávamos a luz, o som, a música, os figurinos, cenários e aprendíamos toda a operação da parte técnica. Foi a época da chamada Criação Coletiva, que buscava diluir as individualidades no trabalho do grupo. Éramos donos e responsáveis pelo espetáculo que produzíamos. Isso foi determinante na minha formação.

Em sua biografia, “Memórias da Lua”, relata-se um episódio em que você recusa um papel e acaba indo para a geladeira na TV Tupi. Lembro-me também de uma história da Zezé Motta, que recusara um personagem na Rede Globo logo após o sucesso do filme “Xica da Silva”, pois a personagem que lhe ofereciam era uma empregada (e a atriz acreditara que, aceitando o papel, reforçaria um preconceito implícito aos negros). Como manter uma postura íntegra, coerente e respeitosa para com sua profissão diante de tantas pressões e instabilidades financeiras do universo artístico? Paga-se um preço alto por isso?
Nem sempre é possível dizer não. Às vezes, não podemos nos dar ao luxo de escolher. Mas sempre procurei ser coerente comigo mesma. Respeitar meus sentimentos. Não dá para fazer um bom trabalho se você não gosta da personagem, ou do texto. Eu comecei a fazer novela na TV Tupi, num papel muito bom na novela “Ídolo de Pano”, de Teixeira Filho com direção do Henrique Martins. Trabalhei com Carlos Zara, que era diretor geral da Teledramaturgia. Era uma jovem atriz de teatro, tratada com muito respeito por grandes profissionais. Até que um diretor, recém chegado à emissora, que não me conhecia, nem tentou me conhecer, me ofereceu um papel inadequado para mim numa novela, que tampouco me agradou. Preferi recusar o trabalho. Precisava muito, pois meu filho era pequeno. Mas sempre acreditei na minha capacidade e nunca deixei de trabalhar. A gente sempre paga um preço pelas escolhas que faz, mas eu não me arrependo.

Para você, o que é a mágica do teatro? Você consegue definir? Há alguma experiência sua que traduza, mesmo que de modo bastante subjetivo, a experiência de se pisar no palco?
Curiosa essa palavra “mágica” aplicada ao palco. O mágico faz um truque que deslumbra a platéia e o fascínio está em não se entender como é realizado o truque. Quando estou no palco, porém, sinto que não escondo nada, pelo contrário, estou totalmente exposta. Nenhum coelho na manga. Talvez essa seja a “mágica”. Sentir-se inteiramente exposto numa das condições mais frágeis que alguém pode se encontrar. Tudo pode acontecer a cada instante em que você está lá, diante da platéia. Todas as noites é uma experiência de princípio e fim de vida e morte. Claro que há a técnica, o controle, as marcas, o texto, o jogo com o outro, mas a maravilha é chegar com isso tudo ao máximo da emoção e da verdade. A mágica é o risco.

Você esteve, de algum modo, ligada ao movimento contra o Golpe de 1964. Seja pelo fato de seu pai ser um homem de esquerda, seja por você ser estudante na época ou frequentar muito o teatro e fazer parte do Teatro de Arena, espaço de discussão e resistência. Como você avalia este período hoje em dia, tanto pelo aspecto pessoal quanto pela formação profissional? E atualmente, para você, qual é a sua avaliação do país em que vivemos? Há algum sentimento do tipo “poderíamos ter sido, mas não somos”? (Do modo mais abrangente, política, cultura, sociedade, valores, enfim: sinta-se à vontade para abordar o tema que lhe for mais confortável ou incômodo).
A indignação e a necessidade de colocar-se contra o regime ditatorial sempre foram tão claras e naturais para mim que ainda me surpreendo quando alguém hoje me diz que na época não tinha noção do que se passava. Que era só mais um governo. Apesar de serem meus anos de juventude, não sinto nenhuma saudade dessa época de repressão e medo. Só quem não viveu sem os valores democráticos pode menosprezá-los. Li esta semana um comentário do Tiago Santiago sobre sua novela, “Amor e Revolução”. Ele disse que o público se surpreende e estranha que personagens do exército sejam torturadores, autoritários, que tenham uma imagem negativa. Aí a gente percebe que o trabalho da ditadura foi muito bem feito. O teatro era, sim, um fórum de discussão e encontro.  Houve muita repressão. Boal foi preso, Heleny assassinada e seu corpo nunca foi encontrado. Nunca tive paciência para partidos e organizações, embora os reconheça como necessários para a sociedade. Mas sempre procurei levar minha resistência através do palco. A ditadura foi um período triste, muito longo, que provocou feridas na nossa sociedade que estão sendo tratadas até hoje no aspecto político, econômico e social. Sou otimista com relação ao país de hoje em vários aspectos. Não há dúvida que a sociedade brasileira vem evoluindo em vários aspectos e se modernizado. Mas é um processo lento que, às vezes, me impacienta. Não consigo entender porque para nós, como nação, a educação e a cultura ainda não são prioridades. Incentivamos o consumo de automóveis e não o de livros????? Construímos estradas, túneis e viadutos para carros ficarem parados e pagamos uma miséria aos professores. Esse, na minha opinião, é o ponto nevrálgico da nossa sociedade hoje.

O que para você é imprescindível para a sólida formação de um ator (refiro-me a leituras, métodos, conhecimento e mais o que lhe vier à mente)?
Hoje contamos com ótimas faculdades de formação artística em diversas áreas. Há uma enorme bibliografia, já traduzida para o português. Há também muitos cursos livres para iniciantes e profissionais. Como em medicina, por exemplo, o ator tem que estar sempre se atualizando. É muito importante ir ao teatro. Conheço pessoas que não gostam de assistir teatro, só de fazer. Aprendemos muito vendo o desempenho de um colega. Mesmo que a gente não goste ou não concorde, aprende. Acima de tudo é preciso manter um agudo senso de observação do mundo que nos cerca. Da riqueza de cada ser humano.

O teatro que você fazia na década de 1970 servia para tirar o espectador de sua cômoda posição e chamá-lo para a reflexão da sociedade de então. Resguardadas a época e a censura que se vivia, é possível hoje fazer esta quebra de letargia? De que forma e em que local (TV, cinema, teatro, etc.)?
Não. O teatro daquela época foi fruto daquele momento. Com a internet o mundo mudou rapidamente, o ser-humano não. O teatro deixou de ser um instrumento de agitação. É hoje local de encontro, reflexão e divertimento. Só haverá quebra de letargia quando e se as pessoas se sentirem insatisfeitas. Pequenos grupos têm manifestado seus desejos e aspirações e me parece que as redes sociais tem sido fundamentais nesses acontecimentos. Talvez seja isso. Hoje tenho muito mais dúvidas e perguntas do que tinha naquela época.

Sua estreia em televisão foi na novela “Ídolo de pano” (TV Tupi, 1974/75). Como foi a experiência? Qual era a sua personagem (que, inclusive, mata o vilão da novela, vivido por Dennis Carvalho)? De que modo você trouxe sua bagagem de teatro para a TV (composição de personagem, técnicas de interpretação, etc.)? Como era o modo de produção da Tupi nos anos 1970?
A personagem se chamava René. Faz muito tempo. Meu filho tinha acabado de nascer e eu precisava deixá-lo em casa para trabalhar. Foi um turbilhão. Tive muita sorte, porque o elenco e a direção eram espetaculares. Recebi muito apoio do Henrique Martins, que lidou com paciência com a minha inexperiência. Minha primeira cena foi com o Denis Carvalho, que já era um ator consagrado de enorme prestígio, além de ser um verdadeiro galã. Minha primeira cena, numa externa, no Horto Florestal de São Paulo, nós fazíamos uma cena romântica que terminava com um beijo. Eu não tinha a menor idéia do que fazer. Não sei se fazia muito frio, ou eu estava gelada de medo. Mas o Denis foi um cavalheiro e resolveu a cena beijando aquela moça dura e gelada. Para se fazer uma externa, na época, o equipamento ia num caminhão de mudanças enorme. As câmeras precisavam “esquentar”, eram pesadíssimas. Não havia as portáteis. Nessa novela, ainda, conheci Laura Cardoso, uma das maiores atrizes brasileiras. Ficava escondida nos cantos do estúdio vendo Laura trabalhar e procurando aprender alguma coisa. Se eu levei alguma experiência do teatro para o estúdio não foi consciente. Simplesmente me atirei de cabeça. “Ídolo de pano” obteve um sucesso enorme. Depois dessa novela, Denis Carvalho e Tony Ramos foram para Globo e poucos anos depois a Tupi fechou.

Em diversas entrevistas e principalmente em sua biografia, você faz honrosas e importantes menções a Alcides Nogueira. Qual a importância dele em sua carreira? Como aconteceu este encontro e o que os une até hoje, não só pelo lado da amizade, mas prioritariamente pelo vértice profissional?
Tenho amor e admiração pelo Alcides. Temos uma identidade de pensamento que se manifestou no instante mesmo em que nos conhecemos. Foi numa leitura da “Lua de Cetim”. Havia na peça a personagem da Dona Candê, uma mulher bem mais velha do que eu naquela época. Mas isso nunca foi obstáculo para mim. Minha vaidade nunca me impediu de fazer qualquer trabalho. É uma das mais belas personagens femininas do teatro brasileiro. Estudando aquele papel, fui me apaixonando por seu criador. Pela forma como ele entende a alma feminina e consegue expressá-la. Os detalhes, a organização do discurso. Tudo. A partir daí, seguimos fazendo muitos outros trabalhos que sempre me trouxeram prazer e reconhecimento do público e da crítica. Até hoje são as palavras do Alcides as que melhores cabem na minha boca.

Dona Bárbara Ventura, de “Força de um desejo” (1999/2000), foi, talvez, uma das personagens mais marcantes em sua carreira na TV. Conte-nos a experiência de se atuar em um texto de época e voltar a trabalhar com Paulo Betti e Alcides Nogueira. Por fim, como construir a personagem que, de devotada mãe e deslumbrada ascendente social, termina a novela por se revelar transtornada em seu amor pelo marido e corroída pelo novo mundo que o título de baronesa acabava de propiciá-la (tendo em conta que telenovela é uma obra aberta)?
“Força de um Desejo” foi uma novela perfeita. Bárbara Ventura tinha um leque tão grande de contradições que era uma delícia e um desafio interpretá-la. Mas isso não era só com minha personagem. A novela toda era riquíssima em conflitos. O elenco era impecável e a direção primorosa. Eu me senti muito à vontade voltando a trabalhar com Paulo Betti, com quem havia feito “Feliz Ano Velho” no teatro. Quando comecei a novela não tinha a menor noção de ela seria a assassina. O maravilhoso de fazer novela é exatamente o fato de ser uma obra aberta. Como na vida, você nunca sabe o que acontecerá no próximo capítulo e como vai reagir a esse acontecimento.

Você, em algum momento, imaginou que sua personagem em “Força de um Desejo” era a verdadeira assassina de diversos personagens?
Acho que já respondi essa pergunta na resposta anterior. Não. Nunca poderia imaginar que aquela mulher quase patética fosse capaz de fúria tão grande. Fiquei impressionada com a trama tecida pelo Gilberto, dando credibilidade a esse acontecimento. Foi maravilhoso.

Acredito que um dos momentos importantes de sua trajetória tenha sido o “Linha direta” sobre o acidente do Bateau Mouche e falecimento de Yara Amaral. Em um instante que se unem muitas pontas de uma mesma pessoa (histórico profissional, memórias afetivas, relações interrompidas, indignação pela injustiça com relação ao acidente, necessidade de interpretar alguém com quem se conviveu), como surgiu o convite e de que modo atravessar uma experiência tão simbiótica sem se perder? Gostaria também que nos contasse sobre o seu trabalho com Yara na novela “Fera Radical” (1988).
Eu trabalhei com Yara em “Fera Radical”, que foi meu primeiro trabalho na TV Globo. Cidade nova, estúdios e pessoal desconhecidos. Tudo diferente. Yara foi uma das pessoas que mais me ajudou a me adaptar e entender os mecanismos da nova casa. Era amante do teatro e falávamos muito sobre isso. Trabalhava na época no Teatro dos Quatro, na Gávea fazendo “Filomena Marturana”, texto do italiano Eduardo de Fillipo. As gravações eram na Cinédia. Estúdio gostoso, distante do Jardim Botânico e do burburinho das outras produções da Globo. Ficamos amigas, choramos na despedida do final da novela, se não me engano no mês de novembro. Ela estava muito feliz por ter conseguido quitar a dívida de sua casa. Na passagem do ano, ligo a tv e me deparo com a tragédia de sua morte. Até hoje não entendo por que fui escolhida para
fazer o papel da Yara no Linha Direta. Me incomodou um pouco, mas achei que devia essa homenagem a ela. Infelizmente, pela própria característica do programa, o foco central era o acidente e não a vida da maravilhosa atriz. Durante a gravação da cena do naufrágio, numa piscina cenográfica enorme, dentro do próprio Projac, quando o barco virou e eu caí na água, lá no fundo senti uma peça de minha roupa enroscar-se nas minhas pernas dificultando minha subida... Fui resgatada por um segurança dos muitos que se encontravam a postos nas bordas da piscina, sem, no entanto, deixar de perceber a ironia da situação.

Ao trabalhar na Record, na década de 1990 e desde 2007, você deve perceber que há uma crítica jornalística especializada em falar mal da emissora por ela estar ligada a uma igreja evangélica. Todavia, não levam em conta que esta é mais uma oportunidade de trabalho para um meio tão reduzido quando a TV. O que você pensa sobre todo este cenário resumido acima? Como você avalia seus trabalhos na Record e a proposta de teledramaturgia da emissora?
Acho que existe, sim, enorme má vontade da imprensa com relação a TV Record. Acredito que existe um forte interesse econômico por trás dessa má vontade. Além disso, nossa imprensa, em geral, é bastante conservadora. E a importância da emissora não é apenas pelo mercado de trabalho que ela amplia, mas, principalmente, pela criação de outras opções para o público. Não só na teledramaturgia. O monopólio da televisão não interessa a ninguém além do dono do próprio monopólio, e um país democrático não podia ficar refém de apenas uma emissora forte. Cheguei a Record há cinco anos e havia apenas dois estúdios. Hoje são dez! Me entusiasma fazer parte desse crescimento. Claro que as dificuldades são grandes, mas a cada novela vejo melhoras substanciais.

Como foi ser escalada para o elenco da primeira novela de Gisele Joras, “Amor e Intrigas”, uma autora estreante, vencedora do Concurso de Novos Autores de Novelas promovido pela Record em 2005?
Quem me escalou para a novela foi o Edson Spinello, diretor com quem tenho feito vários trabalhos e pessoa na qual confio inteiramente. Acho ótimo poder acompanhar e participar do nascimento de uma nova autora. Eu não temo os jovens nem o novo. Tenho mais a aprender do que a ensinar. Gosto de arriscar. Ela foi muito bem e em seguida fiz, da Gisele também, “Bela a Feia”, com uma personagem deliciosa que foi a Vanda.

Qual o maior desafio de sua personagem atual em “Vidas em Jogo”?
Cada novo trabalho é uma nova expectativa e uma nova tensão. Augusta é ainda pra mim um mistério. Estou trabalhando com “luvas de pelica”, pois ela tem um segredo que a autora, Cristianne Fridman, não me revelou. Augusta faz uns telefonas estranhíssimos para alguém que eu não sei quem é. Isso é totalmente novo para mim. É um trabalho no escuro, onde tudo pode acontecer. O fato de Augusta ser extremamente pão dura é um componente também desafiador, pois eu sou o oposto disso. Acho engraçada a forma como ela é sovina. E não entendo como uma pessoa pode ser assim. Talvez me torne, não sovina, mais ao menos mais econômica fazendo a Augusta.

Quais os trabalhos que você destaca como mais significativos em sua carreira? Por quê?
Fiz lindos trabalhos no teatro: “Lua de Cetim”, “Florbela”, “Feliz Ano Velho”, de Alcides Nogueira foram ótimos espetáculos. Mais recentemente “A Cabra”, de Edward Albee. Na televisão: “Força de um desejo”, “Chocolate com Pimenta”. Quando começo um trabalho novo, porém, esse é o mais significativo. É o presente.

Quais trabalhos dos quais você se arrepende ou, com a maturidade, percebe que poderia ter resolvido de outra forma?
Sou uma pessoa que sempre toco pra frente. Não tenho tempo de me arrepender. Penso logo no que vem a seguir. Tento corrigir no próximo trabalho o que errei ou não gostei no anterior. E, de qualquer forma, sempre algo de positivo sobra de qualquer trabalho. Basta saber encontrar.

Pergunta mais do que clichê, mas acredito que, justamente por ser clichê, ela ainda é válida: há algum personagem de outro ator ou época que você gostaria de ter feito ou ainda pensa em fazer?
Não me ocorre nenhum agora. Se já tive esse desejo, hoje caiu no esquecimento.

Quem são os atores os quais você se espelhava no início da carreira? E hoje em dia tem algum?
Eu amo os atores e as atrizes. Nada me dá mais prazer do que vê-los no palco ou nas telas. Gosto de observar as diferentes personalidades em cena. A forma como cada um encara e interpreta seu personagem. E o Brasil é um país rico em talentos. Sempre fui fascinada pela Laura Cardoso. Consegue ser intensa sem perder o humor. Eva Wilma também é uma atriz com profundar do domínio da técnica e muito verdadeira, que eu sempre admirei. Mas como listar os melhores num país com Fernanda Montenegro, Irene Ravache, José Wilker, Marco Nanini, Glória Pires... Posso ficar aqui fazendo uma lista imensa e ainda assim terei cometido
injustiças.

Que tipo de personagem você ainda não interpretou na televisão e que tem muita vontade? E no teatro?
Ainda espero uma vilã de verdade na TV. Sei que hoje todos nós atores sonhamos com um vilão. Hoje, os vilões são muito populares e queridos. Reflexo talvez de um aspecto interessante e perigoso dos valores éticos e morais do público. O que interessa é se dar bem não importa como. Gostaria de tentar interpretar essa nuance do prazer na maldade, de pensar apenas em si mesmo e no próprio interesse, de não conseguir se colocar no lugar do outro. Já no teatro sonho mais com projetos e textos, do que propriamente com personagens.

Como você lida com essa nova geração de atores que estão mais preocupados em se tornar famosos do que serem artistas de verdade? É muito diferente de quando você iniciou sua carreira? 
A produção de teledramaturgia necessita de uma constante renovação de seus atores jovens. Hoje, há uma supervalorização da exposição na mídia e a impressão que atores são profissionais bem-sucedidos economica e profissionalmente. Muita gente aparece buscando isso, mas o dia a dia se encarrega de mostrar a realidade da profissão. Eu encaro isso com naturalidade. Gosto mais de uns do que de outros, como em qualquer grupo de trabalho, e aprendi que os cometas passam e as estrela ficam. Há muitos atores e atrizes dedicados e talentosos na nova geração.

Em seu currículo há muitos trabalhos na TV e diversas atuações no teatro. Entretanto, há apenas três filmes. Por que houve esse descompasso entre TV, cinema e teatro? Falta de oportunidade ou ausência de bons papéis no cinema?
Não tive tempo ou oportunidade de me aproximar mais da produção cinematográfica. O relacionamento é importante em qualquer círculo profissional. Conheço poucos diretores e produtores. O cinema brasileiro passou muitos anos com imensas dificuldades de produção, que era muito pequena. E hoje não há muitos papéis para mulheres na minha idade. Como também estou sempre ocupada na TV ou no teatro, quando ocorre o convite há problemas de agenda. Vários fatores me deixaram longe do cinema, infelizmente.

(por Beatriz Villar)