quarta-feira, 2 de maio de 2012

Um passo adiante, dois para trás

Enquanto a Globo se perde em discussões sobre a (tão equivocada) nova classe C, a Record avança no terreno da teledramaturgia ao exibir mais uma novela de Lauro César Muniz. Apesar de ser chamada de “novela-testamento” por seu autor, “Máscaras” é mais do que isso. Representa um passo de ousadia, mesmo considerando que este termo adquire sentidos mais profundos quando falamos de Lauro César Muniz (autor de textos arrojados como “Escalada”, de 1975, “Os gigantes”, de 1979, “Rosa baiana”, de 1981 e “O salvador da pátria”, de 1989). No entanto, o espetáculo não é completo por influências diversas e o resultado final está aquém da qualidade do texto de Muniz.

Ao falar na novela “Máscaras”, é necessário separar a trama em três eixos: estrutura, construção de personagens e roteiro (o que inclui cenas e seus diálogos). Partamos para a estrutura. Muniz conseguiu reunir em sua espinha dorsal elementos folhetinescos e pura dramaturgia. A trama policial está bem amarrada e segue o ritmo necessário e exigido para que seja adequadamente desenvolvida. Lauro e seus colaboradores (Renato Modesto, Mário Viana, Mariana Vielmond e João Gabriel Carneiro) ainda estão armando as pontas necessárias para que o protagonista Otávio (Fernando Pavão) consiga o que até agora é nomeado como “suicídio virtual”.

Para efeito didático, “Avenida Brasil” tem, entre outros méritos, uma impressionante agilidade nos acontecimentos. Ponto positivo para a produção global, mas não devemos nunca confundir velocidade com qualidade. O caso de “Máscaras” retoma muito bem a questionável “cliparização” da televisão brasileira. Lauro César Muniz tem seu ritmo, exercita sua velocidade e não abre concessões, pois sabe que uma boa história é aquela que é contada ao sabor dos fatos, degustando palavra por palavra.

A construção dos personagens não fica por menos. O perfil de cada um foi desenhado com esquadro e compasso, de tão milimétrico que são seus motivos para adotarem máscaras. A começar pelo protagonista Otávio, um homem arrasado pelo sumiço de sua esposa Maria (Miriam Freeland) e de seu filho recém-nascido. Para desvendar os mistérios que cercam o desaparecimento, Otávio percebe que será necessário renascer sob outra identidade. Além dele, prometem grandes emoções Manuela (Giselle Itié), uma acompanhante de luxo que quer mudar de vida; Décio (Petrônio Gontijo), o psiquiatra que desenvolve um vínculo emocional muito forte com sua paciente Maria; Valéria (Bete Coelho), a socialite mecenas, e seu ex-marido Gomide (Henri Pagnocelli); Olívia (Iris Bruzzi), a atenciosa governanta de Maria; e a doentia relação entre as irmãs Tônia (Daniela Galli) e Luma (Karen Junqueira).

Apesar de se tratar os citados de bons personagens e defendidos com muita garra pelos seus intérpretes, nada é mais delicioso do que acompanhar duas personagens em particular: Nameless (Paloma Duarte) e Elvira (Jussara Freire). Elvira é uma mulher amargurada, desacreditada e que luta para provar que foi injustamente condenada pelo juiz Sotero (Cecil Thiré). No fio da navalha entre a sanidade e a loucura, entre a verdade e a mentira, Jussara Freire oferta inequívocas provas de que é uma atriz de altíssimo gabarito. Seu rosto de linhas retas e bem definidas (tal qual o mármore talhado) consegue transmitir dureza, neurose, piedade, revolta, incompreensão, dúvida, incerteza e mágoa com intensidades cortantes. Já Nameless é um grande acerto do autor e de sua intérprete, Paloma Duarte. Sua imagem é muito semelhante a de grandes protagonistas do cinema noir americano das décadas de 1940 e 1950: loira, belíssima, cabelos longos, boca marcante, olhar profundo e direto. Uma personagem que quebra muitos paradigmas e orienta-se pela pluralidade: ela pode ser o que quiser, vestir a máscara que lhe melhor convier. Não há limites nem restrições para uma personagem sem nome ou biografia (inicialmente) declarados.

Infelizmente, nem todos os personagens encontraram o ator de seus sonhos. Comecemos por Franciely Freduzeski (Claudia), Francisca Queiróz (Flávia) e Luiza Curvo (Laís). Inegavelmente belas, as três deixam latente a cada cena que não dão conta do peso de suas personagens. O caso se agrava com Franciely durante o episódio da morte de Sônia (Bruna di Tulio), onde ela não conseguia de forma alguma passar a dor por perder um parente de forma tão cruel e rápida. Mas o vexame se espraia para outros atores. O triângulo formado por Raul Gazolla (Vado), Eliete Cigarini (Nair) e Lívia Rossi (Yara) não tem fôlego ou ritmo e, para piorar, Eliete Cigarini está atrelada a dois atores inquestionavelmente canastrões e fracos.

Mas, caso fosse necessário eleger um “pior de todos”, o eleito de “Máscaras” é justamente o mais óbvio: Dado Dolabella. Ao tentar interpretar Edu, um jovem com capacidades acima da média, Dolabella afunda de vez um bom perfil criado pelo autor. E, de quebra, ainda deflagra dois pontos vulneráveis da Record: direção e escalação de elenco. A emissora não consegue construir um banco de atores digno do star system ao qual a telenovela brasileira está fundamentada. E não adianta justificar que a emissora está “a caminho da liderança” ou “começando a fortalecer suas produções”: os problemas continuam os mesmos desde “A Escrava Isaura” (2004/05).

O equivocado trabalho do diretor Ignácio Coqueiro (auxiliado pelos diretores José Carlos Pieri, Régis Faria e Antônio Gonzalez) nos leva ao terceiro eixo de “Máscaras”: o roteiro. As cenas de Lauro César Muniz são difíceis e têm um humor incomum na televisão brasileira. Repleto de referências culturais, seus diálogos são vivos, mas devem ser respeitosamente seguidos. Entretanto, Coqueiro não entendeu a novela e nem demonstra qualquer intenção para tal. As cenas resultam imperfeitas, falta ritmo para os atores, a edição é, no mínimo, patética (figurinos idem), os efeitos especiais são infelizes e os takes também. Esta falta de prumo da direção atinge atores como Cecil Thiré (Sotero) e Bárbara Bruno (Zezé), resultando caricatos e perdidos. Os diálogos de Lauro César Muniz, diante de tantos desmandos e incompetência por parte da direção, soam artificiais, carregados e impostados. Quem diria, logo Lauro César Muniz que, na década de 1960, inovou ao apresentar uma telenovela com diálogos coloquiais (“Ninguém crê em mim”, TV Excelsior, 1966).

O que poderia ser entendido como um corajoso e inovador texto será encarado (pelos mais preguiçosos, faça-se a justiça) como uma confusa e dispendiosa novela. Afinal de contas, comentarão alguns, do que adianta a Record gastar valores exorbitantes para gravar uma novela dentro de um transatlântico, se a direção não sabe o que fazer com o “brinquedo”? Das primeiras semanas de “Máscaras”, é possível distinguir dois movimentos bem distintos. Lauro César Muniz apresenta ao público uma crítica ácida, enviesada por uma forte e interessante trama policial. Já Ignácio Coqueiro filtra os capítulos da pior maneira possível, banalizando o texto e evidenciando sua falta de intimidade com a dramaturgia de Muniz. Uma pena.

(por Jordão Amaral)