quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Finalmente, o jogo começou

Atribui-se a Janete Clair a seguinte máxima: “Quanto mais história o novelista gastar, mais história ele terá para contar”. Sorte ou azar, todas as noites tal conselho se vê eficaz em “Vidas em jogo”, da Record. Cristianne Fridmann amargou alguns meses de uma novela sem definição nem emoção por acreditar que precisava segurar a trama do bolão até a metade a novela para torná-la atraente. Ledo engano.

Em entrevistas durante a estreia da trama, Cristianne afirmou que, a partir do capítulo 100, começariam misteriosas mortes entre os personagens envolvidos com a aposta na loteria. Não sei se a novelista cumpriu à risca o prometido número de capítulos, mas o fato é que, até chegar ao primeiro assassinato, o de Belmiro (Ricardo Petráglia), muitas semanas foram recheadas com pequenos episódios que em nada colaboraram para a estrutura da trama.

Tal arquitetura novelística foi parecida com a de “Insensato Coração”. Divide-se a novela em dois grandes blocos. No primeiro, trabalham-se as relações entre os personagens, de modo a complicá-los em trapaças, armações, invejas, amores, parcerias e mágoas, apenas cozinhando a novela (e o público) em banho-maria. A finalidade desta primeira etapa da novela é preparar o público e os personagens para a segunda parte, onde o autor resolve partir para o “tudo ou nada” e, daí, passa à trama propriamente dita, com muitos pontos de clímax e revelações fundamentais para o seguimento da novela.

E, assim como em “Insensato Coração”,  a primeira parte de “Vidas em jogo” é tediosa, claudicante e travada. A Record apresentou uma excelente estratégia de marketing no dia do sorteio premiado, ao inundar o centro do Rio de Janeiro com cédulas falsas (do escopo ambiental, tal propaganda é péssima; já do publicitário, a ação foi perfeita). Todavia, a novela se arrastou em previsíveis desencontros entre Francisco (Guilherme Berenguer), Patrícia (Thaís Fersoza) e Rita (Julianne Trevisol), além de apelar para muitas sequências gratuitas de violência e ação (o que forçou a sempre constrangedora presença dos personagens Cléber e Maurício, vividos por Sandro Rocha e Mário Gomes de forma igual e estranhamente inexpressiva). Resultado deste primeiro “blocão” da novela: um amontoado de personagens e tramas sem muita lógica conexa e, pior, a ausência de uma espinha central para a trama.

Esta primeira etapa era mais do que necessária para, por exemplo, criar fundamentos para a curva dramática da personagem Patrícia. De menina mimada e estagiária de vilã, ela se comove com uma gravidez atípica (será mãe de uma criança com síndrome de Down) e consegue reverter valores errôneos que cultivava. Só que a novela não precisaria ter evitado tanto começar os assassinatos dos jogadores do bolão, ponto decisivo para o desenrolar das tramas mais interessantes. O que foi contado em, mais ou menos, cem capítulos, poderia ter durado cinquenta, sessenta no máximo.

Entretanto, como novela é uma obra aberta e todo dia ergue-se um pedaço da construção final, Cristianne Fridmann parece ter retomado as rédeas de sua criação. A partir da explosão que vitimou os personagens Belmiro e Hermê (Bia Montez), a narrativa ganhou os contornos que necessitava para se tornar atraente e concreta (sem abrir mão do mistério). Agora, é possível afirmar que há uma trama central, personagens atuantes e uma trilha a se seguir (sem torná-la, no entanto, previsível).

O grupo de ganhadores da loteria passa a ser o personagem central. Além dos desafios que devem cumprir para se apossar de metade do prêmio, os personagens envolvidos devem lidar com os efeitos colaterais que a súbita riqueza lhes trouxe. Um deles é Regina (Beth Goulart) que prejudica seus oponentes em sua obstinada caça ao dinheiro. Nesta segunda parte da trama, Regina descobre-se soropositivo. A inclusão do tema da AIDS na novela foi excelente. Primeiro porque o tema está em discussão com o relaxamento de precauções das pessoas mais jovens (apesar da periculosidade da doença). Segundo, pois tal assunto foi tratado de forma convincente e natural, fazendo parte da vida dos personagens.

Cada um dos infectados reagiu à sua maneira, sem aquele artificial comportamento de “I will survive”. Cléber partiu para a negação da doença e, como tal, continuou a infectar outras pessoas. Andréia (Simone Spoladore) fora infectada ao ter sido estuprada por Cléber. Então, lida com o trauma da violência que sofreu e com as novas limitações que o HIV lhe traz. Para Regina, a AIDS causa revolta e ódio, mas, principalmente, um superpoder ao personagem. Afinal, ela está diante de uma morte cruel, possível e próxima. Por isso, não tem mais nada a perder. Regina se torna capaz de atitudes imprevisíveis e inconsequentes, já que não há limitações como o temor pela segurança de sua própria vida.

Outro ponto interessante desta nova “fase” é a revelação de que Augusta (Denise Del Vecchio) é um transexual. Diferente de Sílvio de Abreu e o segredo de Gerson (Marcello Antony) de “Passione”, Cristianne Fridmann foi ousada e feliz ao tratar do tema de modo instigante. Assim como em “Chamas da vida”, onde a autora falou de piromania, neste trabalho a abordagem do transexual deu um sabor a mais aos capítulos com a revolta e preconceito de Raimundo (Rômulo Arantes Neto), ainda que o ator derrape em cenas que exijam maior dramaticidade.

No quesito ação, a trama também foi beneficiada com a aceleração das progressões dramáticas. As cenas de tiroteio, fugas e violência deixaram de ser gratuitas e a direção conseguiu acertar o tom para manter a tensão do telespectador durante o capítulo. Foram excelentes as sequências da morte de Ivan (Silvio Guindane) e da fuga de Rita. Porém, justamente pela sofisticação dos estratagemas, fica complicado, por exemplo, engolir que Rita tenha sido presa pelo sequestro de Patrícia apenas porque um brinco da bailarina foi achado no cativeiro. Pior foi a inocente e fantasiosa cena em que os policiais, revistando o esconderijo de Rita, não a encontram porque não olharam justamente o local mais previsível: embaixo da cama. As intrigas são bem armadas, entretanto, algumas soluções ainda ficam a dever.

Nesta segunda parte, a novela de Cristianne Fridmann ganhou exatamente o que lhe faltava nos primeiros capítulos: contorno, definição, estrutura para que se sustentasse. Embora alguns pontos permaneçam falíveis, a produção encontrou uma unidade dramatúrgica com elementos que interagem, desafiam-se, multiplicam-se. Enfim, agora, Cristianne Fridmann tem uma boa história para contar.

(por Jordão Amaral)

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