terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Nem tão pequeno assim

Mal teve a oportunidade de liderar a audiência com sua minissérie bíblica “Rei Davi” e a Record espalhou por anúncios, propagandas e banners uma campanha onde compara a vice-liderança da Globo com a queda de Golias. Mera hipocrisia, pois, com um produto orçado em R$ 25 milhões, fica bastante difícil de acreditar que a Record seja meramente um “Davi” na disputa pela audiência.

Antes de qualquer afirmação, deixo bastante claro que, para o texto não se tornar injusto e tendencioso, anularemos a questão religiosa que envolve a Record. Ainda que uma emissora de televisão deva se manter apartidária por se tratar de uma concessão pública ofertada por um Estado laico (coisa que, definitivamente, nem a Record e a Globo evitam), acredito que a avaliação de “Rei Davi” seria altamente viciosa e pobre caso levássemos em conta a Igreja Universal do Reino de Deus.

Ressalvas feitas, vamos para o ponto mais interessante da minissérie de Vivian de Oliveira: a inesperada qualidade técnica. Não é novidade que a Record invista em minisséries bíblicas. Já o fizera antes com “A história de Ester” (1998 e 2010) e “Sansão e Dalila” (2011). Porém, “Rei Davi” pode ser considerado um marco na emissora. Os efeitos especiais de batalhas e paisagens são dignos de produções hollywoodianas. A luta do jovem Davi (Leandro Léo) contra o urso no primeiro capítulo foi plasticamente interessante e tecnicamente perfeita.

Outra vantagem da minissérie é justamente a direção de fotografia (difícil saber a cargo de quem, pois a Record não anuncia sua equipe em seu site ou no encerramento dos capítulos). As imagens do programa são belas, harmoniosas, inspiradas e cheias de vida. O resultado é uma minissérie envolvente, emocionante e visualmente impactante para o telespectador. Aliás, o apurado trabalho da direção de fotografia ganha ainda mais valor quando comparado com “Rebelde” ou “Vidas em jogo”, produções da Record que têm mesma identidade visual de todas as outras novelas da casa.

A pesquisa histórica, os figurinos e a direção de arte também não escapam de merecidos elogios. Todos os cenários são preparados com muito cuidado, os figurinos dos personagens são ricos em informações e nota-se que há um intenso trabalho da produção em reconstituir um tempo longínquo. Quem dera se o SBT, com sua tão mal cuidada “Amor & Revolução”, pudesse aprender com suas concorrentes...

O elenco é um fator estranho em “Rei Davi”. Há desempenhos excelentes, como os intérpretes de Davi (Leandro Léo e Leonardo Brício), Gracindo Júnior (Saul), Ângela Leal (Edna), Eline Porto e Maria Ribeiro no papel de Mical, e até Cibele Larrama (atriz de qualidade oscilante) está adequada à sua feiticeira babilã Allat. Contudo, também há o fraco desempenho de atores como Rodrigo Phavanello (Eliabe), Iran Malfitano (Abner) e Raquel Nunes (Rispa). Bianca Castanho (Selima) não decepciona, mas sua personagem até agora está presa a caretas e reações constrangidas. Ainda não teve oportunidade de mostrar a que veio e corre o sério risco de cair em piloto automático. Renata Domingues (Bate-Seba) e Marly Bueno (Ainoã) estão bem em seus papeis, porém, fazem pela milésima segunda vez os mesmos perfis. Convenhamos, Marly Bueno era bem mais feliz com suas megeras à la Manoel Carlos...

Logicamente, parte dos louros que “Rei Davi” colhe é de Vivian de Oliveira e do diretor, Edson Spinello. Spinello conseguiu armar um jogo cênico ao mesmo tempo épico e naturalista, com cenas de batalhas empolgantes e muito bem coreografadas. A única ressalva a se fazer é que, em alguns momentos, a naturalidade dos personagens extrapola o limite desejado. Alguns atores como Claudio Fontana (Jonatas) e Sonia Lima (Laís) perdem a mão em determinados momentos e interpretam no Oriente Médio uma espontaneidade digna do calçadão do Leblon.

Já Vivian de Oliveira acertou e errou ao adotar o puro melodrama. Um capítulo qualquer de “Rei Davi” é uma exemplar aula do gênero, com todos os seus prós e contras. Além dos fatores acima listados (e por se tratar de uma conhecidíssima história bíblica), a boa audiência logo na primeira semana se deve a um roteiro simples, maniqueísta, sem digressões temporais e que privilegia a mensagem veiculada. Com uma trama de fácil digestão, não foi difícil suplantar “O Brado Retumbante” e “Amor & Sexo”, programas minimamente outsiders. O roteiro explorou cenas impactantes, cheias de surpresas e clichês como segredos ouvidos atrás da “porta”, flagras, solilóquios para externar a moral dos personagens, entre outros.

Todavia, o melodrama também foi prejudicial no que diz respeito às ações dos personagens. Tomemos por exemplo Saul (Gracindo Júnior). Entre os capítulos 2 e 5, o rei enlouqueceu e recobrou a lucidez com uma facilidade chocante. Outro quesito contestável foi a morte de Golias (Atalaia Nunes). Não sei até que ponto é necessária a encenação do fato bíblico comme il faut, com degoladas mesmo depois de o gigante já ter sido abatido. Agrava a justificativa: matou para honrar a Deus. Há uma série de implicações que extrapolam a diegese da minissérie e que devem ser exaustivamente ponderadas antes de veicular uma cena com uma mensagem implícita tão conflitante.

“Rei Davi” encanta, seduz e não exige muito do telespectador. Entretanto, o incidente ocorrido com a atriz Cibele Larrama (que teve parte de seu cabelo queimado durante uma gravação) mostra que nem tudo no canal 7 são flores. Para uma emissora que se pretende “a caminho da liderança” como a Record, um fato como este não é um mero incidente: trata-se de irresponsabilidade e descaso. É uma pena, uma mancha em uma produção tão bem acertada.

(por Jordão Amaral)

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