quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Saudades de Pontal d'Areia

O “Vale a Pena Ver de Novo” tem mistérios que nem a própria Globo consegue entender. Apesar de seguir a máxima de que não é viável reprisar novelas com mais de dez anos, exibe desde setembro a segunda reapresentação do remake de “Mulheres de Areia”. Não raro, ela fica à frente de “Malhação” no Ibope e quase encosta em “A Vida da Gente”. Frente a uma novela que foi gravada em 1993, surge a pergunta: o que faz a trama de Ivani Ribeiro atrair o público mesmo depois de quase vinte anos?

Logicamente, “Mulheres de Areia” é uma produção vitoriosa sob milhares de aspectos. Ainda hoje, a versão original da TV Tupi gravada em 1973 é relembrada com alegria e saudade pelos que acompanharam o embate entre as gêmeas Ruth e Raquel, visceralmente interpretadas por Eva Wilma. Em uma época onde a memória televisiva era ainda mais fragmentada, os telespectadores retomavam lembranças da primeira versão para comparar com a produção da Globo, tentavam relembrar desfechos, quem viveu os personagens na década de 70, etc.

O horário das 18h da Globo no início dos anos 1990 vivia certa tranquilidade em termos de audiência. Exceto “Gente Fina” (1990) e “Salomé” (1991), todas as outras produções da casa faziam enorme sucesso e conseguiam grande repercussão. Que o diga “Barriga de Aluguel” (1990/91, atualmente reprisada pelo Viva). “Mulheres de Areia” pode ser considerada o clímax do período. A Globo acalentou realizar o remake desde 1990 e ainda protelou por mais de oito meses quando Glória Pires descobriu que estava grávida de Antonia, sua segunda filha, na reta final de “O Dono do Mundo”.

Ivani Ribeiro conseguiu reeditar a trama (com a grande colaboração de Solange Castro Neves) mantendo o mesmo vigor da versão Tupi, ainda que o esquema de produção em 1973 fosse infinitamente mais rudimentar que o sistema industrial da Globo. Aliás, é preciso ressaltar que, à primeira versão foi adicionada a trama central da novela “O Espantalho” (exibida pela TVS/Record-São Paulo em 1977 e reprisada pela Tupi em 79/80 e pelo SBT no início dos anos 80). Ivani relatara em uma entrevista que unir as duas novelas era quase como escrever uma terceira novela inédita. O “ineditismo” entabulou uma estrutura emocionante, empolgante e com peripécias mil ao longo dos 201 capítulos.

A trama não apresenta barrigas ao longo de oito meses de exibição. Muito pelo contrário, temos em “Mulheres de Areia” um modelo de estrutura novelesca e exemplares estratégias para o envolvimento do espectador. A trama das gêmeas teve de um tudo: troca de identidade, mortes misteriosas, golpes, reviravoltas miraculosas, julgamentos, etc. Nenhuma expectativa foi artificialmente esticada até o último capítulo; os episódios eram encerrados no tempo exato. Mesmo quando o núcleo central precisou de pausas para respirar, sempre houve alguma trama secundária para assumir o comando da narrativa. Foi assim com o assassinato de Wanderley (Paulo Betti), com a renúncia de Breno (Daniel Dantas) ou com a prisão de Donato (Paulo Goulart).

Inacreditavelmente, diversas tramas desenvolvidas na década de 70 para “Mulheres de Areia” e “O Espantalho” ainda eram muito atuais em 1993. Talvez o maior exemplo seja o da poluição das praias, problema hoje frequente, mas que à época era responsável por epidemias e calamidade na saúde pública. Ao contrário do senso comum sobre as novelas das seis (histórias de amor bobinhas, inocentes, água com açúcar, apenas para as donas de casa), “Mulheres de Areia” era uma trama inteligente, viva e que poderia muito bem ter sido exibida às 20h, faixa na época ocupada pelos últimos capítulos de “De Corpo e Alma” e boa parte de “Renascer”.

A tecnologia importada pela Globo para realizar os encontros de Ruth e Raquel levava o público ao êxtase. Na primeira versão, um truque de câmera dava conta de reunir as gêmeas de Eva Wilma: bastava tampar um dos lados da lente e gravar a cena inteira com uma das personagens. Em seguida, trocava-se o lado tampado para regravar a cena com a outra gêmea. Moderníssimas máquinas e softwares permitiam Glória Pires contracenar consigo até em marcações complicadas, como no tapa que Ruth dá em Raquel. Mérito dos diretores Wolf Maya, Carlos Magalhães e Inácio Coqueiro, que desenvolveram uma maneira eficaz para a gravação destes momentos especialmente empolgantes. Contudo, apesar de tanta tecnologia, as esculturas de areia de Tonho da Lua foram feitas pela mesma pessoa nas duas versões: o ator Serafim Gonzales.

Quanto ao elenco, “Mulheres de Areia” trazia consigo um apanhado de felicidades. Grandes atores como Raul Cortez, Nicette Bruno, Suzana Vieira, Paulo Goulart, Adriano Reys, Laura Cardoso, Eloísa Mafalda, Carlos Zara, Sebastião Vasconcellos e Serafim Gonzales agigantaram a presença de seus personagens (apesar de muitos estarem em papéis pequenos). Sem falar em tantos outros atores, como a já citada Glória Pires (sempre esbanjando talento), Vivianne Pasmanter, Humberto Martins, Andréa Beltrão (em um de seus poucos sucessos nas telenovelas), Edwin Luisi, Giovanna Gold, Gabriela Alves (estreando na TV como a doce Glorinha), Eduardo Moscovis, Oscar Magrini, Ricardo Blat, Suely Franco, etc. Com esta segunda reprise, é possível notar que não há personagens deslocados, interpretações equivocadas ou excessivas. Tonho da Lua (Marcos Frota), por exemplo, beirou ao caricato para alguns. Entretanto, seu excesso é vital para a alternância entre as plataformas maniqueístas representadas por Ruth e Raquel.

Um bom elenco, grandes tramas, estrutura impecável, tecnologia à altura, respeito ao melodrama, favorável memória afetiva do telespectador, ritmo preciso, inteligente roteiro, direção sensível... Talvez, a reunião destes mesmos fatores não originem outro grande sucesso, mas, em “Mulheres de Areia” são os motivos para o êxito. Nesta produção, entendemos o significado da palavra “clássico”: aquilo que é da mais alta qualidade, cujo valor foi posto à prova do tempo. A trama de Ivani Ribeiro garantiu excelentes momentos em todas suas reexibições. Todavia, em 2012 “Mulheres de Areia” nos deixa uma constatação até certo ponto incômoda: é necessário muito mais do que robalos e bagres para construirmos uma teledramaturgia brasileira forte.

(Por Jordão Amaral)

Um comentário:

  1. Prezado Jordão,

    Sou um jornalista desempregado, apesar de ainda jovem (33). Alterno minha atual condição com procura de emprego e, durante as tardes, assistindo à incrível novela Mulheres de Areia. Nos anos 90, durante minha adolescência, confesso que era "noveleiro". Não perdia aos muitos sucessos da Globo. Mas de todas elas, Mulheres de Areia está entre as três melhores novelas, na minha humilde opinião. Afinal, em qual folhetim podemos encontrar o talento de Glória Pires, o incrível vilão vivido por Raul Cortez, Marcos Frota impagável como Tonho da Lua, Nicete Bruno e Adriano Reys como um casal super divertido, as belíssimas Viviane Pasmanter e Alexandra Marzo (por onde andará?) e uma trama tão inteligente? Realmente, não existem mais novelas como essa! Uma pena! Um grande abraço e parabéns pela resenha.

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