quarta-feira, 14 de março de 2012

Uma polêmica barriga

Imaginem a seguinte situação: você (ou sua companheira) deseja imensamente engravidar. Entretanto, há um problema de saúde que a impede de levar a gravidez adiante. Algumas alternativas são levantadas. Ah, mas devo alertar que estamos em 1990. Então, a única possibilidade seria adotar uma criança. Mas, chega Glória Perez e apresenta um dilema que algumas mulheres viviam e que a grande imprensa ignorou: alugar um ventre para gestar o seu filho. Foi calcada nesta modernidade que a Globo exibiu a novela “Barriga de Aluguel”.

A partir desta produção, Glória Perez usou seu inquestionável talento como novelista para antever questões da modernidade. Tentando transmitir o difícil conceito de barriga de aluguel e as suas implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas, a autora construiu uma estrutura didática de personagens. Ana (Cássia Kiss) é uma bem sucedida jogadora de vôlei, com um estabilizado casamento com Zeca (Victor Fasano), mas a pressão social e o imenso desejo de ser mãe a impedem de uma felicidade completa. O casal, orientado pelo doutor Baronni (em uma interessante composição de Adriano Reys) opta por alugar o ventre de uma desconhecida.

Esta estranha é Clara (Cláudia Abreu), uma jovem sonhadora e determinada que objetiva ter sucesso. Filha do sapateiro Ezequiel (Leonardo Villar), leva uma vida dupla: enquanto para o pai ela é apenas uma balconista de loja de tecidos, à noite ela se apresenta como dançarina no Copacabana Club. Aceita alugar a barriga para, com o dinheiro, viver com Tadeu (Jairo Matos), seu mais recente namorado. Entretanto, Ana e Clara passam a viver uma relação sem precedentes e indefinida. São mães pela metade: enquanto Ana terá um filho com sua carga genética mas não sente as transformações da gravidez, Clara é tocada pelo instinto materno para uma criança com a qual não tem sequer vínculo familiar.

Outro ponto importante da trama é a vida conjugal de Baronni: casado com a refinada Aída (Renée de Vielmond), mantém um caso extraconjugal com sua assistente Luísa (Nicole Puzzi) há muitos anos. Aída, aparentando firmeza em suas atitudes, tenta minar o relacionamento do marido com milimétrica frieza e espantoso raciocínio lógico. Porém, suas fraquezas emocionais são deflagradas quando ela se apaixona por Tadeu, que neste ponto da trama é noivo de Laura (Teresa Seiblitz), filha de Aída e Baronni.

É interessante notar que há na construção de “Barriga de Aluguel” elementos e temáticas que seriam altamente definidoras do estilo de Glória Perez. A primeira delas, e mais óbvia, é o interesse pelo novo, pelo que a ciência pode proporcionar ao ser humano. Partindo deste ponto, Perez risca um traçado entre o futuro e os mitos mais remotos de nossa sociedade. Tal qual a temática do clone é uma releitura modernizada do arquétipo do “outro”, a disputa entre Ana e Clara remonta (em parte) o bíblico episódio de duas mulheres que reivindicavam a mesma criança e coube ao rei Salomão julgar quem era a verdadeira mãe.

A trama de um homem dividido entre a família oficial e sua antiga amante foi abordada não só em “Barriga de Aluguel”. Em “Carmem” (Manchete, 1987/88), César (Odilon Wagner) era casado com Virgínia (Juliana Carneiro da Cunha), mas mantinha um secreto caso com sua cunhada, Nina (Selma Egrei). Em “América” (Globo, 2005), Glauco traía sua esposa Haydée (Christiane Torloni) com sua advogada, Nina (Cissa Guimarães). Neste último caso, há a introdução de uma terceira mulher para complicar a já tumultuada relação entre os personagens: a lolita Lurdinha (Cléo Pires).

As protagonistas de Glória Perez têm suas características reunidas em Clara. São mulheres jovens, intempestivas, atrevidas, corajosas, sonhadoras, batalhadoras, puras, inocentes e românticas. Entram de cabeça no que objetivam, mostrando até certa irresponsabilidade e imaturidade. Passionais, quebram códigos morais e preconceitos visando apenas serem felizes. Desde Carmem (Lucélia Santos), passando por Dara (Tereza Seiblitz em “Explode Coração” – 1995/96), Jade (Giovanna Antonelli em “O Clone”, 2001/02) até chegar em Sol (Deborah Secco em “América”, 2005) e Maya (Juliana Paes em “Caminho das Índias”, 2009).

Ainda no escopo de características autorais, em “Barriga de Aluguel” temos a forte representação do subúrbio carioca e seus pitorescos personagens. Em um canto de Pilares (Zona Norte do Rio), poderemos encontrar o protestante Ezequiel e sua filha oprimida Raquel (Sura Berditchevski), o apaixonado caminhoneiro João (Humberto Martins), a intrometida vizinha Dos Anjos (Vera Holtz), a antenada Ritinha (Denise Fraga)... Junto de Ritinha, a novela divulgou o início dos bailes funk no Rio de Janeiro, que ganhariam ampla divulgação a partir dos anos 2000.

Já na Zona Sul, há o conflito entre Baronni e Molina (Mário Lago) em torno da saúde pública. Graças a um convênio governamental, Baronni ocupa boa parte de um hospital público para seu Centro de Reprodução Humana. Enquanto nesta área há diversos incentivos financeiros e infraestrutura adequada, no resto do hospital público que está sob a responsabilidade de Molina falta o mais básico para atender os pacientes, além da precariedade e da ineficiência de um sistema de saúde já falido em 1990. Apesar do conservadorismo de Molina pesar em seus questionamentos, a situação vivida pelos funcionários do hospital estimula a seguinte reflexão: como poderemos pretender um grande país, com grandes avanços científicos, se o mais básico atendimento de saúde é sucateado e desprezado a um plano obscuro e sem ações públicas neste âmbito?

A importância da novela “Barriga de Aluguel” extrapola sua narrativa. Prestemos a atenção na trama de Esther (Julia Lemmertz) nestes mais recentes capítulos de “Fina Estampa”. Indiretamente e por caminhos diversos, Esther está insegura pois pode ser considerada judicialmente apenas uma barriga de aluguel para o nascimento da filha de Beatriz (Monique Alfradique). Longe de questionar aqui a similaridade ou não entre as tramas, o que quero destacar é que o tema apontado por Glória Perez em 1990 ainda suscita debates, dramas, identificações e novas histórias para contar em 2012, assim como bem fez Aguinaldo Silva.

Com 243 capítulos, o que não faltaria é aspecto para destacar em “Barriga de Aluguel”, novela considerada o primeiro grande sucesso de Glória Perez na Globo. Após uma rápida reprise em 1993, agora o público tem a digna oportunidade de acompanhar a trama completa pelo canal Viva. Para os telespectadores, fica a felicidade de rever atuações como a de Adriano Reys, Mário Lago, Beatriz Segall (Miss Brown), Emiliano Queiróz (Barroso), Renée de Vielmond, Nicole Puzzi, Lady Francisco (Yara), Leonardo Villar, Sônia Guedes (Ambrosina), Lúcia Alves (Moema), entre outros. Para os desejosos em se tornar autores ou pesquisadores de novelas, há a chance de se estudar com a distância do tempo como surgem as características e temáticas que chamamos de griffe Glória Perez. Para o público em geral, a reprise de “Barriga de Aluguel” nos oferece a possibilidade de refletir sobre o país que éramos em 90, a nação que poderíamos ter sido e o Brasil que ainda não somos.

(por Jordão Amaral)

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