terça-feira, 12 de julho de 2011

Sessão da Tarde

No primeiro semestre de 2011, a Rede Globo lançou em sua linha de shows muitas séries e minisséries. Entretanto, quatro destes programas chamam a atenção, pois fazem parte de um mesmo processo: a transposição de um filme para um programa de televisão. O motivo mais evidente é a empolgação com os bons resultados dos longas produzidos ou coproduzidos pela Globo Filmes (generosa parte dos grandes sucessos dos últimos dez anos do cinema nacional tem por trás seu financiamento). Assim, o público pôde acompanhar as minisséries “Chico Xavier” e “O bem-amado” e as séries “Divã” e “A mulher invisível”. Este texto se propõe a refletir sobre os resultados deste aparente fenômeno de diálogo entre mídias, veículos e gêneros.

Talvez, a grande diferença entre cinema e TV comece na noção de autoria, entendido aqui como o trabalho daquele que dá esteio a uma ideia-mãe, desenvolve e emprega nesta história específicos mise-en-scène, técnicas e estilo. No cinema, o autor de cada filme é o diretor, responsável pelo argumento (às vezes coautor, mas quase sempre haverá a presença dele nos textos), direção de câmeras e atores, estilo e intenções que formarão a unidade daquele produto. Já na TV, o autor é o roteirista, pois a mídia televisão é predominantemente baseada no diálogo, na palavra. Por sua velocidade sub-humana, o apuro técnico acaba em segundo plano, apesar de, há alguns anos, nossa TV conseguir grande qualidade ficcional e técnica, mesmo com o insano trabalho. A transitividade entre o cinema e a TV pode fazer crescer as duas áreas, estabelecendo diálogos entre narrativas, atuações, ritmo de edição, aspectos técnicos, etc. Basta lembrar que, recentemente, toda novela da Rede Globo, por exemplo, passou a ter um colorista, profissional responsável por estabelecer e dar o apuro final à imagem, preocupação antes exclusiva do cinema.
     
A prática não é nova, nem fora inventada pela Globo. Nem é preciso ir muito longe em nossa memória para citar que, em 2006, a Record e o canal de TV a cabo Fox exibiram “Avassaladoras, a série”, baseada em filme de mesmo nome e lançado em 2002 pela diretora Mara Mourão. Apesar de um elenco repleto de atores globais (como Vanessa Lóes, Virgínia Cavendish, Eduardo Galvão, Márcio Garcia, que, a propósito, não participam do filme), a série sofreu inúmeros problemas internos (produção falha, transposição ruim, etc.) e externos (baixa audiência, má programação na grade da Record, entre outros) que fizeram com que tivesse apenas uma temporada.

Logo em janeiro, duas minisséries atraíram o público: “O bem-amado” e “Chico Xavier”. Estranhamente, na televisão se viu apenas uma versão alongada dos filmes, com a inserção de cenas não exibidas no cinema (há inclusive alguns personagens que participam apenas destas “cenas extras”, formando pequenas histórias paralelas). Daí, a brilhante ideia: como se trata de um produto de longa duração (mais de duas horas), por que não dividi-lo em quatro episódios e exibir como minissérie? Até aí, nenhum problema quanto à forma. Porém, classificar alguma história a ser narrada em filme ou minissérie não deve levar apenas em conta a duração do mesmo ou o número de capítulos que terá. Há muitos anos, vários filmes de Hollywood costumavam ter ganchos e um intervalo no meio da exibição. Por se tratar de duas partes, então não é mais filme? Ora, se nada na estrutura e linguagem de “Chico Xavier” e “O bem-amado” foi substancialmente alterado, o que vimos foi tão e somente o filme do cinema – e não uma minissérie. Nada mais.

Processo às avessas aconteceu com “O auto da compadecida” (1999) e “A invenção do Brasil” (2000) que, criadas como minisséries, foram editadas e receberam tratamento técnico e estético para se transformarem em filmes. O lapidar das imagens esteve na televisão, mas no cinema ganhou dimensão adequada. Já o roteiro não era nem para a televisão, nem para o cinema: tratava-se de um mélange entre as duas técnicas. Diálogos rápidos, afiados e uma narrativa coesa distanciavam-se do que a televisão estava acostumada a fazer, entretanto estas mesmas características resultaram no cinema em uma maior valorização do roteiro.

Depois, foi a vez de “Divã”, filme de grande sucesso do diretor José Alvarenga Jr., baseado no romance de Martha Medeiros (história esta que fora primeiramente adaptada para o teatro). A mola mestre das desventuras de Mercedes (Lília Cabral), em todos os gêneros e formatos, foi a mesma: o universo feminino. Uma chance de ouro para Marcelo Saback (roteirista final do seriado, adaptador da peça e responsável pelo roteiro do filme), Lília Cabral e José Alvarenga Jr. explorarem nuances e até assuntos difíceis sobre este tema (ainda mais beneficiados pelo horário de exibição da série). Todavia, o que encontramos na primeira temporada foi um reelaborar de situações já vistas no romance, peça e filme (apenas para ilustrar, a morte de uma amiga de Mercedes foi um plot abordado mais de uma vez, só que com tratamento e condução diferentes para cada oportunidade). Isso não é um demérito, deixemos bem explicitado. Apenas foi a perda de uma boa ocasião para o avanço, mas optou-se por seguir o mesmo... Sem contar na falha escolha por artifícios fáceis a que o texto da série recorreu algumas vezes (levante o dedo aquele que viu nos episódios, pelo menos, três “coincidências” a cruzar o caminho da protagonista, complicando ainda mais o que já estava tortuoso). Porém, de todos os casos levantados neste texto, “Divã” ainda é o melhor de todos para conduzir uma interação entre o cinema e a TV.

Equivocado é pouco quando pensamos na série “A mulher invisível”. O filme de Claudio Torres parte do princípio de que apenas nós mesmos somos capazes de nos ajudar e conta com uma inteligente metáfora que conduz a narrativa, explicitando o quanto podemos ser nossos próprios sabotadores, trocando o real por uma ilusão desejada. Pedro (Selton Mello) é um controlador de tráfego que, após uma separação, apaixona-se pela ilusória vizinha Amanda (Luana Piovani). Sensível, esta paixão, porém, o impede de perceber que Vitória (Maria Manoella), desta vez uma vizinha de verdade, nutre um amor simbólico por ele. Ao chegar à TV, a abertura da série nos informa que ela é “baseada no filme de Claudio Torres”. Todavia, creio que se trata muito mais de um caso de “inspirado em”. Alteram-se elementos estruturais da narrativa (Pedro agora é um publicitário em crise, sua vizinha é substituída pela “esposa” Clarisse – Débora Falabella, entre outros), apaga-se a metáfora do filme, mas não se coloca nada no lugar. O que antes tinha uma intenção densa, passa a ser leviano mesmo. Além disso, para a série, os roteiristas optaram começar a história quase que pelo meio. Pedro já tem consciência de que Amanda é uma mulher invisível, mas ninguém além de seu melhor amigo Wilson (Álamo Facó) sabe disso. Somando-se a alteração na estrutura e no ponto de partida, a série chega a sua primeira e curtíssima temporada com um resultado final fraco, repetitivo e raso, apesar de boas gags.

Sem contar o esquema de produção de “A mulher invisível”. Ter um programa na televisão coproduzido por terceiros (Leia-se produtoras, outras emissoras, etc.; neste caso, tanto a Rede Globo quanto a Conspiração Filmes dividem a realização do projeto.) garante uma maior flexibilidade de tratamento do texto, temas, inserção de novos talentos e maior (e melhor) gerenciamento de custos e lucros. Mas, se analisarmos a ficha técnica da série, veremos que não há quase nada de novo por ali: os roteiristas já trabalham (ou trabalharam) para a Rede Globo, os atores idem (com exceção dos ótimos Álamo Facó e Deborah Wood), diretores e outros profissionais também. Ao invés de se aproveitar a oportunidade de arejar o gênero, escolheu-se continuar com os mesmos profissionais, com seus vícios de anos, com sua “patota” enferrujada.

No final de toda esta panorâmica por sobre as séries e minisséries citadas, falta ainda ressaltar um ponto. Se o diálogo entre cinema e TV (estabelecido aqui através de transposições de filmes em programas de TV) pode gerar um avanço para as duas mídias, e se este “crescendo” não aconteceu por inúmeras falhas (a principal delas, a repetição), então qual é a vantagem deste processo todo? Rapidamente, a resposta salta aos nossos olhos e nos ruboriza tal nossa ingenuidade sobre as verdadeiras causas: o garantido retorno financeiro de uma ideia já testada e aprovada pelo público, como já disse no primeiro parágrafo. Emissora de televisão é uma empresa como outra qualquer e todas elas têm por objetivo o lucro. Entretanto, a televisão brasileira permitia-se correr riscos, desvendar searas, apostar alto, em nome da combinação qualidade + audiência = prestígio e faturamento. Hoje, opta-se por projetos seguros, lucros garantidos. A TV brasileira não foi feita assim nos últimos sessenta anos. Por que devemos nos acostumar com isto agora?

(por Jordão Amaral)

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