sábado, 30 de julho de 2011

O ABC do Santeiro


Confirmando sua vocação para o resgate de boas recordações e excelentes momentos televisivos, o canal Viva começou neste mês de julho a reprise da novela “Roque Santeiro”. Um dos maiores fenômenos de audiência e qualidade dramatúrgica (equiparando-se a novelas como “Beto Rockfeller”, “O bem-amado”, “Irmãos Coragem”, entre outras, no que diz respeito a sua importância neste gênero), a trama de Dias Gomes, escrita por ele e por Aguinaldo Silva, mostra às novas gerações um momento de raríssima felicidade de nossa televisão.

Em 1985, a linha de telenovelas da Rede Globo vinha em uma considerável estabilidade, o que engrandecia ainda mais as comemorações dos vinte anos da emissora. No horário das seis, tanto “Livre para voar” quanto “A gata comeu”, sua sucessora, eram êxitos indiscutíveis. No horário das sete, após a coqueluche que fora “Vereda tropical”, a novela “Um sonho a mais” teve muitos percalços no início (de audiência e, principalmente, de dramaturgia), mas acabaria por encontrar um caminho, ao menos, digno até seu fim. Já no horário das 20h, “Corpo a corpo”, de Gilberto Braga, envolvia os telespectadores com uma inteligente e folhetinesca trama que tocava em assuntos muito sérios, tais como ascensão feminina, racismo, etc. Neste mesmo ano de 1985, o último presidente militar deixava o poder, após 21 anos de um legado maldito. Entretanto, a Censura federal perduraria por mais alguns anos, mas agora relativamente mais branda (ainda que muito pouco). A mesma Censura federal que vetara “Roque Santeiro” em 1975.

“Roque” seria a primeira novela de Dias Gomes no horário das 20h. Também marcaria o início da produção a cores no horário e uma renovação temática, trazendo para o carro-chefe da emissora o estilo bem sucedido das novelas das 22h. A trama de “Roque Santeiro” fora baseada na peça de Dias “O berço do herói”, assim como boa parte (em maior ou menor grau) de suas obras para a TV. Porém, a referida peça já estava vetada pela “temida” Censura federal. Dias Gomes, acreditando na óbvia limitação de alguns censores, mudou alguns nomes, poucos aspectos (a peça trazia como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial) e apresentou a sinopse da novela, que fora aprovada. Após 36 capítulos gravados, no dia da estreia, a novela recebeu diversos cortes inexplicáveis. Horas depois, ela foi proibida de ir ao ar às 20 horas (e, mesmo sendo exibida às 22h, mais cortes seriam feitos, o que inviabilizava a compreensão da trama). Algum tempo depois, Dias Gomes soube que o telefone de Nelson Werneck Sodré, seu amigo, estava grampeado e o Dops (Delegacia de ordem política e social) ouviu a conversa em que Dias confessava a adaptação de “O berço do herói”. A Rede Globo preparou uma emergencial reprise de “Selva de pedra”, parte do elenco foi remanejada para a próxima novela, “Pecado capital”, a emissora amargou muitos cruzeiros de prejuízo e, no fundo, os profissionais envolvidos (leia-se Boni e Daniel Filho) guardaram um nó na garganta, pois sabiam que o que apresentariam era radicalmente diferente do que o gênero vinha fazendo.


Tal inconformismo é plenamente justificável. A novela conta a história de Roque (José Wilker), um santeiro na pequena Asa Branca que, ambicioso e limitado pelas poucas oportunidades que a vida lhe deu, aproveitou a invasão do cangaceiro Navalhada (Oswaldo Loureiro) para roubar os moradores da cidade, passando-se por interlocutor do bandoleiro ao dizer que ele exigia uma quantia para ir embora sem matar ninguém. Só que, em posse do dinheiro, Roque foge e vai para o Rio de Janeiro e, depois, Europa. Neste meio tempo, Sinhozinho Malta (Lima Duarte) percebe a oportunidade de trazer sua amante Porcina (Regina Duarte) e forja a morte do santeiro. Traumatizado, o pai de Roque, Salustiano (Nelson Dantas), isola-se em uma palafita e começa a pregar a paz como Beato Salú. Dias depois, Porcina aparece, dizendo-se viúva do santeiro, o que já inicia uma confusão, pois Roque deixara uma noiva, Mocinha (Lucinha Lins). O mito de Roque começa a crescer quando uma menina, Lulu (Cássia Kiss), mente para os pais, dizendo que tem visões onde Roque lhe manda que se banhe com a lama do rio para se curar de algumas doenças de pele. Os banhos dão certo, já que a lama é medicinal. As mentiras vão crescendo e, dezessete anos depois, todos estão aprisionados nos mitos que criaram. Sinhozinho e Porcina enriqueceram muito com a exploração de Roque Santeiro, assim como Zé das Medalhas (Armando Bógus). Lulu, agora mulher de Zé das Medalhas, torna-se uma quase santa aos olhos da população e leva uma vida castrada de qualquer prazer. A cidade de Asa Branca prospera, torna-se um ponto turístico religioso, com grande projeção no cenário político nacional, o que muito envaidece o prefeito (e barbeiro) Florindo Abelha (Ary Fontoura). O ápice de tal efervescência é a chegada à cidade da equipe de cinema liderada por Gérson do Vale (Ewerton de Castro), dispostos a filmar a saga de Roque Santeiro. Todavia, este, sem saber que se tornou um mito (com direito a uma falsa viúva), resolve voltar para Asa Branca, a fim de devolver um ostensório roubado da igreja de Padre Ipólito (Paulo Gracindo). Seu retorno pode significar o fim de Asa Branca, o que leva os poderosos da região (Sinhozinho Malta, Porcina, Zé das Medalhas, Padre Ipólito e Florindo Abelha) a criar mil situações, ganhando tempo para convencer Roque a ir anonimamente embora e manter o mito de Roque Santeiro intacto.

A estrutura da novela permite uma crítica ao misticismo sim, mas também se pode dizer que há uma discussão sobre os mitos que criamos, com os quais permanecemos aprisionados (talvez a grande representante disso seja a personagem Lulu). Como se pode ver, é uma experimentação da linguagem narrativa bem diversa dos intrincados amores que predominavam a telinha (não que tais enredos não sejam bons, mas o excesso deles traz uma massificação de um modelo de história, chegando a se confundir gênero com o conteúdo repetidamente veiculado). A inteligente trama de Dias Gomes recebeu imprescindível releitura de Aguinaldo Silva. Dias, na época, não quis reescrever a novela por alguns motivos, entre eles, o fato de estar cansado do trabalho televisivo após anos elaborando sozinho o seriado “O bem-amado”. Além disso, Dias Gomes implantara neste período a Casa de Criação Janete Clair, uma tentativa de se formar autores para a televisão, o que lhe ocupava muito tempo de trabalho. Aguinaldo Silva assume então a novela e, juntamente com os diretores (liderados por Paulo Ubiratan), engrandece a aceitação da novela pelo público, chegando a marcar 100 pontos de audiência. Deste fato, começa a via crucis de “Roque Santeiro”.

O problema é que a novela se torna um mito muito maior do que realmente é. A equipe estava muito empenhada em contar tal história e o público encontrava-se extasiado pela possibilidade de assistir a uma trama sem as ferrenhas ameaças da Censura (ainda que ela continuasse a existir). Resultado: a novela se tornara logo nas primeiras semanas um fenômeno sem precedentes. Dias Gomes, voltando de uma viagem à Europa, percebeu o imenso êxito de sua história e tentou retomar a redação. Aguinaldo Silva não aceitou de modo algum, principalmente quando sugeriram que ele deixasse a novela e divulgasse que o fez para homenagear Dias, permitindo-lhe escrever o final. A confusão estava armada.

No que se refere à narrativa de “Roque Santeiro”, esta alternância de autoria cria três diferentes níveis na estrutura da novela. O primeiro está nos cinquenta capítulos iniciais, escritos por Dias Gomes e retrabalhados por Aguinaldo Silva. É a introdução da história, a apresentação de todos os elementos. Em seguida, temos o rincão Aguinaldo Silva, que inclui seus traços autorais, como a criação da Rua da Lama (inspirada na baixada fluminense, região que Aguinaldo conhece muito bem por ter trabalhado anos como repórter policial) e a chegada ao clímax, quando Padre Albano (Claudio Cavalcanti) reúne a população de Asa Branca para revelar a farsa. Após, com a retomada de Dias Gomes, esvazia-se as adições criadas por Aguinaldo. A conduta dos personagens é um grande indicador dessas variações. Sinhozinho Malta inicia a novela como um grande malandro, passa a se mostrar violento e disposto até a resolver as situações na bala, para, no fim, fazer de um tudo para colocar panos quentes em todos os problemas causados pela chegada de Roque.

Apesar de tantas confusões e desníveis narrativos, a novela “Roque Santeiro” guarda números bastante vultosos. Além de uma expressiva audiência, a trama originou um álbum de figurinhas, duas adaptações literárias (uma em 1987, de Eduardo Borsato, e outra em 2008, de Mauro Alencar) e duas trilhas sonoras recordistas em vendagem. O volume 1 de “Roque Santeiro” ultrapassou 1 milhão de cópias vendidas logo nas primeiras semanas. Ao contrário do habitual (e retomando um esquema inicial para as trilhas sonoras), as músicas desta novela foram compostas, por encomenda, a personagens específicos. Tal preciosismo é fundamental para a interpretação da obra. Como exemplo, o que seria do professor Astromar Junqueira (Ruy Resende) sem a grave voz de Zé Ramalho a cantar “Mistérios da meia noite”? Incrivelmente, tantas derivações a partir da novela foram lançadas muito antes de a Rede Globo ter um esquema de licenciamento de produtos, prática mais do que corrente hoje em dia. Recentemente, “Roque Santeiro” foi a primeira telenovela da Rede Globo a ser lançada em DVD – prática bastante usual no México, onde a Televisa vende compactos de seus maiores sucessos; no Brasil, algumas tímidas tentativas foram feitas, como os compactos de “Floribella” e Dona Beija” (este último ainda em VHS). Além de todos estes dados, falta citar que ela foi reprisada em duas ocasiões: em 1991, antes da novela das seis (a saber, “Salomé” e “Felicidade”) e em 2000/01, no “Vale a pena ver de novo”.

O público tem agora o deleite de rever atuações marcantes de Lima Duarte, Regina Duarte, Yoná Magalhães, Lídia Brondi, Paulo Gracindo, Ary Fontoura, Heloísa Mafalda, Ruy Resende, Lucinha Lins, Cássia Kiss, Armando Bógus, Claudia Raia, entre outros. Mas, acima de tudo, é a chance de rever um momento em que acontece uma rara sintonia entre texto, elenco, direção, público, forma e conteúdo. “Dizem que Roque Santeiro, um homem debaixo de um sonho / Ficou defendendo seu canto e morreu / Mas sei que é ainda vivente na lama do rio corrente / Na terra onde ele nasceu” (...)

(por Jordão Amaral)

Um comentário:

  1. Sugiro um tema para post: músicas descontextualizadas na trilha sonora de "Insensato Coração". Toda ela é feita por pessoas que não tem um pingo de noção e escolhem pela melodia e não pela letra.
    O tema do vilão Leo é "Satisfaction", dos Stones. Ora, se a letra diz que a pessoa não consegue se saciar, embora tente muito, este deveria ser o tema da insaciável Bibi.Vilão que se preza tem como tema algum hip hop ou rap.
    O tema "Suspicious Minds", de Elvis Presley,que agora não me vem à cabeça para quem é, casaria perfeitamente com André e Carolina, uma vez que a relação patina graças à insegurana que ele passa para ela. Finalmente temos "Que País é Esse?", do Legião Urbana, que toca aleatoriamente na trama. Sem contar que "Insensato Coração" vem de outra música que raras vezes foi tocada na novela.
    Ou seja, quem está selecionando a trilha da novela não entende absolutamente nada de nada de nada.

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