quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Difícil exercício

Certa vez, Eva Wilma, ao relembrar seus personagens em novelas para o projeto “Memória Globo”, relatou a seguinte teoria: “Foram personagens que eu costumo chamar de ‘carrega-piano’, porque elas não têm grandes ‘olés’ (...), não tem ‘olé’ nenhum. Mas carregam o piano. Se não fizer bem feito, os outros [personagens] todos dançam”. Acredito que a definição da grande dama das artes no Brasil pode explicar um pouco a trajetória dos personagens Marina (Paola Oliveira) e Pedro (Eriberto Leão), em “Insensato coração” e a constante queixa que preencheu a imprensa “especializada” em teledramaturgia.

Primeiramente, é importante notar que, apesar de uma certa imobilidade destes personagens quanto à ação, Pedro escapa da classificação do meio para o final da novela. O caso dele é um pouco diferente de sua partner Marina. Pedro segue uma progressão dramática muito difícil até determinado ponto da história. Visto como um herói por salvar um avião comercial de um sequestro, entra em conflito ético após se apaixonar por Marina, “melhor” amiga de sua noiva Luciana (Fernanda Machado), às vésperas de seu casamento. A situação se complica, pois, ao sofrer um acidente de avião, acaba responsabilizado pela morte de Luciana e perde a licença de piloto (além de ficar temporariamente paralítico). Então, o personagem mergulha em um período de depressão, crises, cadeia e fisioterapias. Representar a depressão é muito complicado em televisão, principalmente em telenovelas, que exigem ação contínua por parte do público e das revistas “especializadas”. O deprimido é caracterizado pela completa incapacidade de agir, de atuar em seus problemas. Quem viu o filme “Melancolia” sabe muito bem do que estou tratando. Para o público, esta fase blue de Pedro soou muito pálida, fraca, pouco empolgante, principalmente se levarmos em consideração o histórico do ator Eriberto Leão em personagens firmes (como o Zeca Diabo de “Paraíso”, em 2009, ou o Dimas de “Sinhá-moça”, de 2006). Rompido este bloqueio, após a recuperação dos movimentos das pernas, entre outros fatos, o personagem pôde acontecer, mostrar sua importância na trama, mesmo que estivesse ainda presa à ingenuidade de acreditar em seu irmão, Léo (Gabriel Braga Nunes). No último mês de novela, então, Pedro conseguiu influir de maneira direta no rumo da história, sendo responsável inclusive por desmascarar Léo para Norma (Glória Pires).

Já com Marina, o “destino” foi mais cruel. O personagem, programado para ser uma mulher moderna e arrojada, terminou na telinha sempre presa a uma moral de mocinha, mesmo que uma mocinha modernosa. O conflito inicial (apaixonar-se pelo noivo da “melhor” amiga) ficou estranho quando, na mesma época, Marina relatou para sua prima Bibi (Maria Clara Gueiros) que Luciana não era tão amiga assim dela. Bem, caímos aqui em um dilema ético, porém, parece-nos que nossa sociedade baniu este conceito da vida prática. Passado este primeiro desafio, a personagem teve que lutar por seu amor, mas o grande obstáculo era a depressão de Pedro, o que é altamente subjetivo no caso da telenovela. Aqui, abro parênteses para explicar que não digo que está errado em se falar da depressão, mas que, em televisão, ao se lidar com este tema, todo o cuidado do mundo é pouco, já que o tom soturno pode afastar o telespectador, por melhor que seja a trama. Enfim, voltando à Marina, após muitos desencontros, ela se casa com Léo, para tentar esquecer Pedro. Estão nesta fase as melhores oportunidades para a personagem Marina se tornar atuante, movimentar a história. Mantém um caso amoroso extraconjugal com Pedro, passa a investigar as tramoias de Léo e o ápice de sua influência na trama é quando Marina tenta gravar uma confissão do marido para incriminá-lo. Logo depois de brincar de ser espiã, Marina volta a trilhar um caminho morno, sem grandes reviravoltas.

Discordam da exposição? Então, vejamos a participação de cada um nos acontecimentos que antecedem a morte de Norma. Pedro, Marina e Raul (Antonio Fagundes) decidem que Norma deve encarar realidade para entender e aceitar que Léo a usará novamente. Para tal, tentam contar a ela que uma pulseira dada por Léo, na realidade, fora roubada de Marina. Mesmo com a revelação da designer, Norma não se rende imediatamente e busca Wanda (Natália do Vale) para confirmar o que foi dito. Norma percebe que Léo mentiu e dá uma chance a Pedro e Marina de contarem tudo o que sabem. Então, é criada uma armadilha para que Léo confesse que não ama Norma. O responsável por colocar tal estratagema em prática é Pedro, que provoca o irmão até arrancar dele a confissão, ouvida por Norma. Depois deste micro clímax, Pedro vai embora mas, no caminho, decide voltar, preocupado com a reação de Norma. Chegando à fatídica casa, dá de cara com Raul e o corpo da enfermeira. Pedro, Raul, Wagner (Eduardo Galvão) e Jandira (Cristina Galvão) são conduzidos à delegacia, prestam depoimentos, etc. Depois desta rápida retomada dos capítulos 181 e 182, eu lhes pergunto: se Pedro teve tamanha presença na ação da trama, onde estava Marina? A personagem de Paola Oliveira ficou presa em seu escritório, aguardando periódicos relatórios de Pedro via celular. A inércia da personagem nesta situação é apenas um dos muitos exemplos que se pode encontrar ao longo da trama.

Outro detalhe que passou desapercebido da imprensa é que, estruturalmente, “Insensato coração” contou com mais de um protagonista. Temos o que eu chamaria de “protagonização compartilhada” entre os personagens Marina, Pedro, Norma, Léo, Raul, Wanda, Carol (Camila Pitanga), André (Lázaro Ramos), Cortez (Herson Capri) e Natalie (Deborah Secco). Cada um deles é protagonista de sua subtrama e, na junção de todas estas subtramas é que surge a espinha dorsal da novela (tal união acontece de modo efetivo após o capítulo 100). Trata-se, então, de uma construção sofisticada e complexa de novela, o que é positivo para o gênero, mas leva a alguns efeitos colaterais, como a ausência de um protagonista absoluto (levando à divisão desta força entre muitos personagens).

Entretanto, vale salientar que, desde janeiro, Paola Oliveira e Eriberto Leão receberam inúmeras críticas: falta de química, antipatia, entre muitas outras maledicentes que não vejo sentido em reproduzir aqui. Tais críticas são prejudiciais em uma análise, já que os dois mostraram grande profissionalismo e excelente espírito de equipe, de coletivo. Não adianta querer uma soberba performance de um ator, atuação esta além de sua responsabilidade, pois tal trabalho acabará acentuando desníveis no elenco e destruirá algo chamado unidade. Cada personagem tem seu espaço exato para preencher, podendo evoluir ou não dependendo das necessidades da trama, e não do peso comercial do nome do ator que o ocupa. O de Marina e Pedro era este apresentado. Este caso me faz recordar o problema que Taís Araújo encontrou quando protagonizou “Viver a vida”, em 2009. Sua personagem teria sido ofuscada por Luciana (Alinne Moraes) e Tereza (Lília Cabral). Reclamava-se que Taís não demonstrava empatia nem empolgava como Helena. Porém, poucos na época pararam para sublinhar que Taís Araújo estava cumprindo o papel a que lhe era destinado, nem mais, nem menos. Então, é mais do que merecido ressaltar mais uma vez a competência de Paola Oliveira e Eriberto Leão, profissionais em grande crescimento e capazes de segurar voos mais ambiciosos.

Gilberto Braga e Ricardo Linhares têm seguido um estilo de protagonistas bem parecido nas últimas três novelas (atenção aos caluniadores: “seguindo estilo parecido” não quer dizer “estão se repetindo”). Em “Celebridade” (2003/04), novela da qual Ricardo Linhares participou como colaborador, Maria Clara (Malu Mader) e Fernando Amorim (Marcos Palmeira) tiveram uma relação bastante ofuscada pelo brilho de vilões como Laura (Claudia Abreu), Marcos (Márcio Garcia), Renato Mendes (Fábio Assunção), Ana Paula (Ana Beatriz Nogueira), etc. Fora isto, a atuação de cada um na trama ficou presa por diversos motivos. Como exemplo, Maria Clara só passou a reagir aos golpes de Laura quando perdeu tudo e percebeu que a doce e proativa assistente era, na realidade, a víbora responsável pelo seu declínio. Já Fernando esteve a novela inteira preso nos problemas conjugais com Beatriz (Deborah Evelyn), nas chantagens do sogro Lineu Vasconcellos (Hugo Carvana) e na recente morte do filho Fábio (Bruno Ferrari), o que teve por consequência uma depressão do personagem Inácio (Bruno Gagliasso). Já em “Paraíso tropical” (2007), Gilberto e Ricardo criaram uma protagonista, Paula (Alessandra Negrini), que não tinha grande impacto de ação. Ela recebia e amortecia a ação de outros, como a irmã gêmea Taís (Alessandra Negrini). Diferente de seu par romântico Daniel (Fábio Assunção) que, por estar contra Olavo (Wagner Moura) em uma luta de poder no grupo Cavalcanti, teve melhores oportunidades para dominar sua trama para agir, aproximando-se mais do que esperamos de “protagonista” clássico.

O que podemos tirar de lição do casal principal de “Insensato coração”? Primeiro, não deve ser uma regra fixa que todo personagem seja obrigado a dar muitos olés ao longo de uma história. O personagem está naquela trama porque exerce uma função específica naquela engrenagem, mesmo que seja o de “carrega-piano”. Segundo, que atualmente temos uma imprensa “especializada” ávida por encontrar boatos e crises em todos os setores da televisão. Como a telenovela ainda é o carro-chefe de investimentos e audiência, desce-lhe o chicotinho sem piedade e sem uma justa análise. Terceiro e último, se compararmos a trama de Marina e Pedro com a de Norma, onde houve uma agressiva e amarga mercantilização dos sentimentos, pudemos acompanhar uma história de amor que nos incentiva a pensar que vale muito a pena preservar e batalhar por bons sentimentos, ainda que estejamos em uma atualidade bem estranha (“bebês voadores” do sexto andar, crimes cometidos por cinquenta reais ou impunidade descarada, entre muitos outros). Tal conclusão chega a me dar um conforto mesmo. Ou será que a função da teledramaturgia não é também nos alentar?

(por Jordão Amaral)

3 comentários:

  1. Pelo amor de Deussss....até que enfim encontro uma pessoa sensata.
    Jordão, está de parabéns, vc conseguiu enxergar e mostrar em palavras TUDO o que eu penso e infelizmente, esses "especialistas" não conseguem enxergar.

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  2. Adoreiii, está de parabéns!!! Muito bom o texto!!

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  3. Parabéns Jorge, pela lucidez na análise. Fico tentando imaginar o que está por traz de críticas mordazes que tentam desacreditar o trabalho de um ator ou atriz que possui talento e um trabalho em contínuo desenvolvimento, como são os casos de Eriberto e Paola. Que justiça seja feita e você a fez. Meus respeitos.

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