domingo, 22 de maio de 2011

Entrevista: Maria Adelaide Amaral

Após o grande sucesso de “Ti Ti Ti” e enquanto prepara a microssérie sobre a vida de Dercy Gonçalves, Maria Adelaide Amaral, uma das mais festejadas autoras da TV Globo, nos concedeu uma ótima e inteligente entrevista onde fala de seus trabalhos na literatura, teatro e televisão. Deliciem-se!


Em 1979, sua primeira incursão na TV foi com “Os gigantes”, colaborando com o autor da novela Lauro César Muniz. Entretanto, parece-me que esta novela não deixou boas lembranças para muita gente (Régis Cardoso faz críticas abertas em sua biografia “No princípio era o som”). Gostaria que você nos contasse como entrou neste trabalho, quais percalços encontrou, como se deu o final da novela (e a experiência em televisão) e o que a motivou a voltar para o veículo onze anos depois.
Eu só entrei nessa empreitada para ajudar o amigo Lauro, a quem muito devia, mas não tinha a menor intenção de deixar a Abril Cultural, onde tinha um monte de amigos, me divertia e ainda por cima podia escrever minhas peças de teatro. Em 1990 só aceitei o convite do Cassiano Gabus Mendes para ajudá-lo em “Meu Bem Meu Mal”, porque o Collor tinha caçado as poupanças dos brasileiros e me deixou sem um tostão furado.

Como uma escritora “que ‘escreve’ nas onze” (parodiando um chavão do futebol), quais são suas referências pessoais na literatura, no teatro, no cinema e na TV? E mais: quais fontes você aconselharia a um jovem autor (pensando aqui independente do gênero ou veículo) buscar no intuito de cristalizar uma sólida base cultural?
Leiam muito. Bons autores. Ruins também, desde que saibam contar uma história. Vão muito ao cinema e ao teatro. Ouçam todo tipo de música. Não tenham preconceitos de gênero, de estilo ou de idade. Um bom melodrama é como um samba canção: conta de maneira pungente as dores de amores frustrados. Vivam intensamente sem medo de quebrar a cara porque na hora de escrever uma cena de rompimento vão precisar dessa experiência e desse material.

Em sua biografia, “A emoção libertária”, você descreve um pouco de sua carreira como atriz na televisão dos anos 1960. De que forma a pequena Maria Adelaide, recém-chegada de Portugal, transformou-se em protagonista de novela? Quais boas lembranças você carrega deste momento?
Desde criança queria ser atriz e não perdia a oportunidade de me apresentar nos espetáculos da escola. Nos anos 50, faziam grande sucesso na TV Tupi de SP os programas infanto-juvenis do Júlio Gouveia e da Tatiana Belinck. Além de “O Sítio do Picapau Amarelo”, eles criaram o “Teatro da Juventude” que adaptava clássicos da literatura e ia ao ar aos domingos de manhã. E, nas terças e quintas às 19:30, ia ao ar uma novelinha, também adaptada de livros juvenis. Então, na primeira oportunidade que tive, fui oferecer meus préstimos ao Júlio Gouveia que, afinal, me chamou um ano depois para eu fazer um pequeno papel no “Teatro da Juventude”. A partir daí, sucederam-se outros trabalhos, mas, como os programas eram ao vivo, nunca tive oportunidade de me ver atuando. Até que em 1960, fazendo uma telecomédia na TV Excelsior que já fazia uso do videotape, pude finalmente me ver no vídeo. A experiência não podia ter sido mais decepcionante: não é que eu fosse ruim. Eu não era nada. Então comecei a me preparar para ser crítica de teatro. Mas lembro com carinho e saudades dessa fase da minha adolescência quando ainda todos os sonhos eram possíveis e de meu efêmero sucesso como Becky (em Tom Sayer), e como a vilã alta (na novelinha Angélica). E dos colegas que se tornaram amigos e o são até hoje, como Davi José, que se tornou professor universitário depois de ter sido um grande ator na extinta TV Tupi e no teatro de arena.

“O bruxo” e “Aos meus amigos” são dois bons exemplos de textos seus carregados de experiências pessoais, onde você se expõe com toda a sorte de matizes que os referidos momentos lhe trouxeram. Como é para você equilibrar-se neste fio tênue entre ficção, realidade, vida particular, vida do personagem? Como ocorre, conscientemente para você, essa metamorfose de uma dolorosa experiência pessoal em frutífera obra?
Acho que não há uma peça de teatro ou um romance meu que não tenha em maior ou menor medida um cunho biográfico. Mesmo as obras que escrevi sob encomenda como “Chiquinha Gonzaga” (1983) e “Mademoiselle Chanel” (1993), são permeadas do que vivi e senti. Mas a maior parte dos escritores faz isso. Mesmo os cineastas. O que são os filmes do Bergman, Fellini, Woody Allen? O que é a obra de Proust? A maioria dos criadores se nutre de si transformando a dolorosa matéria pessoal numa obra que encontra ressonância em milhares de pessoas.

Ainda sobre a pergunta anterior, eu revi recentemente uma entrevista onde você diz que escrever é uma terapia para você. Nunca entrou em um consultório de psicanálise, mas tem a necessidade de escrever sempre. Mesmo em TV é possível esta terapia?
Não me submeti a processo de psicanálise, mas fiz terapia junguiana de 1979 a 81 e, depois, de 1993 a 1995. E foi uma experiência transformadora que não competiu nem eliminou a minha necessidade de escrever romances e peças de teatro. E também na tv acho impossível escrever algumas cenas de novela - um embate de sentimentos, por exemplo, - sem colocar nos personagens a minha experiência e os meus sentimentos.

Conte como foi adaptar o livro “Aos meus amigos” na minissérie “Queridos Amigos”. Fale um pouco sobre esse processo.
Escrevi “Aos Meus Amigos” sob a emoção do suicídio de Décio Bar em meados de 1991. Ele foi uma das pessoas mais brilhantes que conheci: poeta e escritor, arquiteto, artista plástico, cineasta, jornalista, influenciou meu gosto, minhas preferências culturais. Sua morte me abalou profundamente e mobilizou a vontade de falar sobre ele e nossa geração. Mas, francamente, nunca pensei em adaptar “Aos meus amigos” para a TV. Achei que daria um filme, não uma minissérie. A idéia de adaptar o livro para a TV foi do Dan Stulbach. Considerei a sugestão, escrevi um argumento e recebi sinal verde para fazer a sinopse. Mas, como outros livros que adaptei, esse também sofreu modificações em virtude das exigências teledramatúrgicas. No livro, o encontro dos amigos se dava em função da morte do Leo. Na minissérie, Leo, sabendo que vai morrer, prepara o encontro desse grupo que se amava e que por diferentes razões se separou. Também resolvi deslocar a ação para novembro de 1989, um ano emblemático no melhor e no pior sentido para o Brasil e o mundo: tivemos a primeira eleição direta para presidente desde a eleição do Jânio, em 60; o Muro de Berlim caiu, no dia 9/11, a inflação brasileira chegou a 50% ao mês, o desemprego era dramático em todos os setores e, de modo particular no jornalismo, onde eu trabalhava. No plano pessoal, novembro de 1989 também foi emblemático: encerrei, com a edição de “Os Cem Anos da República”, a minha última contribuição à indústria editorial. Essa seria a última vivência de redação e, enquanto estava escrevendo a minissérie, lembrava bem dos sonhos e desencantos que nos cercavam.

Em 1997, depois de bons trabalhos como colaboradora, você estreia como autora-solo em “Anjo mau”. Um remake de uma novela muito bem-sucedida, com o aval de pessoas talentosíssimas como Sílvio de Abreu, Boni, Carlos Manga, Denise Saraceni, Glória Pires (apenas para citar alguns). Se uma estreia como autora-solo já é uma “pedreira”, como encarar uma estreia como esta, com desafios imensos (por exemplo, a memória afetiva dos telespectadores, o árduo trabalho de encontrar uma nova forma de contar a mesma história, etc.)?
Se a gente parar para pensar diante dos grandes desafios, se intimida, paralisa e não consegue fazer nada. Uma sinopse minha – A Sombra da Suspeita -, tinha, em 48 horas, sido aprovada e descartada. Estava claro que o Boni queria o remake de “Anjo Mau”, eu queria provar que sabia fazer novela, o Silvio confiava no meu taco e achou que eu tinha que me oferecer para fazer o remake. E assim começamos. Eu cheia de dedos com o original do Cassiano. Mas o Carlos Manga, diretor de núcleo, rejeitou totalmente os capítulos que eu tinha escrito respeitando o original do Cassiano. “Eu não quero fazer essa novela!”, ele disse numa reunião na sala do Boni. Eu fiquei atônita. “Afinal não é o Anjo Mau do Cassiano que eles querem?” O Silvio respondeu: “Não! O Manga quer que você escreva a sua novela.” Voltei para São Paulo e com a sábia supervisão do Sílvio comecei a escrever a nova versão de “Anjo Mau”, que felizmente deu certo.

No remake de “Anjo Mau”, Nice, feita por Glória Pires, não era tão má assim. Por que resolveu por abrandar as maldades da personagem? Ou elas foram ofuscadas pelas maldades de Paula (Alessandra Negrini)?
A Nice também não era tão má no original, coitadinha. Quando lemos os capítulos do Cassiano, descobrimos, perplexos, que o grande pecado da Nice tinha sido cobiçar um homem acima do seu nível social e lutar por ele usando de todos os meios. Mas, em 1997, isso não fazia mais sentido. Aquilo que nos anos 70 era condenável tinha passado a ser legítimo. Então, tivemos que carregar nas tintas nas “maldades” da Nice para justificar o título da novela, mas elas acabaram sendo ofuscadas pelas maldades da Paula.

Em tempos de “classificação indicativa”, para você, existem temas a não ser trabalhados em TV? Já teve problemas com a “classificação indicativa”?
Fiquei muito surpresa quando reclassificaram “Ti Ti Ti” para 10 anos. “Anjo mau”, que passou às 18h. Hoje só seria aprovada para as 21h.

Você trabalhou em grandes telenovelas como colaboradora e conviveu com pessoas que são referências para a televisão brasileira (Lauro César Muniz, Cassiano Gabus Mendes, Sílvio de Abreu, Walther Negrão). O que você absorveu de cada um para seu trabalho?
Os meus principais professores foram o Silvio e o Cassiano: o Cassiano me ensinou a desenvoltura e o bom humor, o Silvio me ensinou a técnica. Nunca trabalhei como colaboradora de novelas do Negrão. Mas sabia que iria aprender muito com ele quando nos juntamos para escrever “A Casa das Sete Mulheres”.

Ao longo desta última década, suas minisséries estabeleceram um caminho possível para recontar momentos importantes da história brasileira. Como é seu trabalho, desde o surgimento do tema, passando pela pesquisa até a última revisão dos capítulos? Ainda sobre a pesquisa: para você, qual é o limite permitido entre o real, o biográfico e a ficção?
Primeiro proponho o tema e depois, uma vez aprovada a sinopse, inicio uma intensa pesquisa sobre a história. Porém como não faço telejornalismo mas ficção, os limites acabam sendo ditados pela experiência e pela intuição.

Em teatro, qual trabalho lhe deu mais prazer? E qual lhe deu mais problemas? De que forma escrever para teatro pode enriquecer o autor? E como trabalhar em teatro no Brasil pode empobrecer o autor?
Todas os trabalhos têm suas alegrias e dores. Há peças difíceis de escrever, mas cujo resultado junto ao público foi um grande prazer. “De braços abertos”, “Chiquinha Gonzaga”, “Intensa Magia”, “Querida Mamãe”, principalmente. Escrever para teatro sempre enriquece um autor. Não no sentido material. A maior parte dos autores faz outras coisas. Mas o teatro nos ensina muito e nos enriquece emocional e profissionalmente.

Atualmente, alguns autores de novela declaram que estão muito cansados para enfrentar uma hercúlea jornada de trabalho. Todavia, há muitos jovens que querem escrever para a televisão. Neste bastão de guerra que é a renovação de um gênero, qual a forma de entrada para um time tão seleto de autores na TV? E no teatro? Quais os caminhos, os conselhos que você apontaria aos jovens dramaturgos e roteiristas?
Sempre recomendo aos jovens que aspiram se tornar teledramaturgos que construam um currículo prévio na literatura, no jornalismo, no teatro ou no cinema. Isso vai ajudá-los a provar que sabem escrever e a serem mais respeitados.

“Os Maias” é um dos melhores trabalhos realizados pela TV Globo, um esmero total. Mas também foi cheio de polêmicas, principalmente relacionado ao primor de direção de Luiz Fernando Carvalho e a baixa audiência. Por quê?
“Os Maias” era um produto extremamente sofisticado, com um tempo de narrativa cinematográfico ao qual os telespectadores não estavam acostumados. O fato de a cada noite ir para o ar em um horário diferente também foi um fator negativo. Mas tivemos, por assim dizer, uma audiência qualificada e fizemos grande sucesso junto à crítica e aos formadores de opinião. O fato é que, com todos os percalços, “Os Maias” é uma obra prima, um momento muito importante na minha carreira, na de Luiz Fernando Carvalho e na televisão brasileira.

Em 2002, as revistas noticiaram que você tinha uma sinopse inédita para o horário das 18h (Dança da vida), que acabou sendo cancelada e substituída pela novela “Coração de Estudante”. Caso seja verdade, você não pensa em retomá-la?
Deus sabe o que faz. Por conta do cancelamento dessa novela, pude escrever uma peça de teatro (Tarsila), uma minissérie (A Casa das Sete Mulheres) e, a pesquisa de “Tarsila”, acabou originando em 2004 “Um só Coração”.

Depois de um “passaralho” ocorrido na Abril na década de 1970, você escreveu a peça “A resistência”. Hoje em dia, as experiências do cotidiano ou situações-limite ainda te inspiram a escrever? O que anda chamando a atenção de Maria Adelaide Amaral?
Diria que o que me impressiona é a corrupção e a banalidade do mal e da violência.

Pouco antes da estréia de “Ti Ti Ti”, saiu uma reportagem na qual a manchete era em letras garrafais uma suposta frase dita por você: “Não assisto novela, tenho mais o que fazer.” Você realmente disse isso?
Não dessa maneira. O que eu quis dizer é que tenho mais o que fazer do que assistir novelas que não me interessam. Mas estou assistindo, entusiasmada, a “Cordel Encantado” e vi com muito prazer “Escrito nas Estrelas”.

Quais novelas mais te marcaram?
Beto Rockfeller, O Casarão, Dancing Days, Água Viva, Roda de Fogo, Roque Santeiro, Ti Ti Ti, Guerra dos Sexos, O Rebu, Vale Tudo, Baila Comigo, Mulheres Apaixonadas.

Encerrada a bem-sucedida novela “Ti Ti Ti”, quais são os seus próximos projetos? Há algo que você quer realizar em TV, teatro e na literatura e que ainda não pôde fazê-lo?
Vou escrever uma microssérie sobre Dercy Gonçalves para janeiro de 2012. Em março que vem devemos, o Vincent Villari e eu, entregar uma sinopse de novela para 2013. E ainda não perdi as esperanças de fazer a minissérie sobre Maurício de Nassau.

Como foi o seu processo de criação em “Ti Ti Ti”, que, além de ser um remake, era uma homenagem a Cassiano Gabus Mendes? Você se sentiu limitada em algum momento ou deu o rumo que quis para as tramas?
Aprendi em “Anjo Mau” que remake é uma recriação a partir de uma idéia genial. Atualizamos, modificamos, suprimimos e acrescentamos tramas e personagens, mudamos rumos e trajetórias na medida da inspiração e das nossas necessidades. Acho que foi por isso que “Ti Ti Ti” não teve o sabor de coisa requentada.

Como você lidou com o casal Edgar e Marcela que deu o que falar em “Ti Ti Ti”? Houve muita pressão do público quando Renato entrou na jogada e começou a disputar o coração da moça de igual para igual com Edgar?
Na sinopse tínhamos estabelecido que Marcela ficaria com Renato, mas a química entre a Ísis e o Caio Castro era forte demais para ser ignorada.

Voltou de vez às novelas agora? Já tem ideia para um próximo trabalho?
Ainda não.

Como é sua rotina de trabalho? Como é feita a divisão com seus colaboradores?
Trabalho 7 dias por semana e meus colaboradores também. Em “Ti Ti Ti” deleguei, pela primeira vez, a escaleta para o Vincent Villari. A gente conversava sobre o que ia acontecer nos próximos capítulos, ele escrevia, eu lia e depois distribuía as cenas entre os outros colaboradores de acordo com o seu perfil, mas sempre me reservava o maior número de cenas e as mais difíceis. Em princípio, todo mundo escrevia todos personagens, com exceção do Rodrigo Amaral que ficou, desde o princípio, com as cenas do Ari/Valentim e do Chico pela desenvoltura com o idioma espanhol e a gíria dos motoqueiros. Depois que eles me mandavam as cenas redigidas eu fazia uma acurada edição, o que significava enxugar e fazer tudo que é necessário para dar uma unidade estilística ao capítulo. Uma vez finalizada a edição, ele era enviado para todos os colaboradores para sugestões e observações. Em geral, precisas e preciosas, elas eram quase sempre incorporadas. Finalmente, o capítulo ainda ia para o Álvaro Ramos para uma última revisão, antes de ser enviado ao Jorge Fernando e à produção da novela.

Como era feita a divisão de trabalho com Cassiano Gabus Mendes?
O Cassiano não fazia escaleta. Ele escrevia os capítulos de segundas, quartas e sextas e eu os de terças, quintas e sábados. Sempre dando prosseguimento aos plots do capítulo anterior. Como não havia internet, a gente se comunicava por telefone ou por bilhetes. Uma pena eu não ter mais os bilhetes do Cassiano. Além de muito engraçados, eram uma aula de teledramaturgia.

O que achou do blog? Algum recado para nossos leitores?
É um prazer ler o blog pelo bom português e o conhecimento profundo que vocês têm da teledramaturgia brasileira. E, naturalmente, um blog tão inteligente só pode atrair leitores inteligentes. Minha gratidão a vocês e a eles por darem voz a quem luta por uma teledramaturgia que não subestima a inteligência dos telespectadores.

(por Beatriz Villar)

2 comentários:

  1. Esse blog é excelente. Vocês fazem um trabalho digno de nota. Parabéns, e continuem em frente
    Wilton

    ResponderExcluir
  2. Olha só que coisa: quem me indicou esse blog foi justamente a Maria Adelaide durante uma entrevista que fiz com ela para o meu livro. Vira e mexe, passo por aqui, mas só agora resolvi comentar. Muito boa a entrevista, parabéns!

    ResponderExcluir