segunda-feira, 2 de maio de 2011

Entrevista: Marcílio Moraes

Hoje é dia do último capítulo da novela “Ribeirão do Tempo”, exibida pela Record e preparamos uma ótima entrevista com o autor da novela, Marcílio Moraes. Um autor competente, assinou diversos sucessos na televisão. Neste bate-papo, ele fala sobre sua saída da Globo, sua parceria com Dias Gomes, entre outras coisas mais. Aproveitem!


Qual a diferença entre se trabalhar na Rede Globo e na Rede Record?
Existem inúmeras diferenças. E essas diferenças nem sempre são as mesmas para os diferentes artistas. No meu caso particular, tive muito mais liberdade de criação na Record. Ou seja, pude desenvolver projetos que na Globo certamente ficariam nas gavetas. Outros autores talvez considerassem apenas a diferença na audiência e na repercussão das suas obras em uma e noutra emissora. Qualquer programa na Globo repercute, de imediato, vinte vezes mais que na Record. Para cada notícia sobre uma novela na Record tem no mínimo vinte da concorrente na Globo. Basta dar uma olhada na mídia para constatar esse fato. Costumo dizer, usando uma metáfora futebolística, que na Globo você entra em campo ganhando de 4x1. Se tomar um gol, é um incompetente. Na Record, você entra perdendo de 4x1. Se fizer um ou dois gols, já vira herói.

Qual a importância para sua carreira na troca de emissoras?
Depois de 18 anos, sair da Globo foi muito bom para mim, no plano pessoal e no profissional. Porque havíamos chegado à seguinte situação. O que os executivos da Globo gostariam que eu fizesse, eu não queria fazer. Tipo remake de “O Profeta”, segurar novelas que estavam indo para o buraco, etc. E o que eu queria fazer, os meus projetos, eles não aprovavam. Havia um impasse.

Você sentiu que foi perdendo espaço dentro da Globo? O que culminou sua ida para a Record?
Essa é uma longa história. Simplificando, eu diria que sim, fui perdendo espaço. Especialmente depois da morte do Dias Gomes. Tanto eu como o Ferreira Gullar, que costumávamos trabalhar com ele, começamos a ser marginalizados. O Gullar saiu em 2001 e eu saí em 2002. Mas é preciso dizer que, em grande parte, eu forcei a não renovação do contrato. Comecei a cobrar dos executivos uma atitude menos acomodada na dramaturgia, que não saía do rame-rame das novelas tradicionais. Essa experimentação que atualmente acontece na Globo, com a produção de inúmeros seriados, eu propus insistentemente nos últimos anos em que estive lá. Enchi o saco da Marluce e daqueles subordinados dela com essa proposta, até a não renovação do contrato no final de 2002. Felizmente, hoje em dia, não sei se por força das circunstâncias ou da mudança da direção, vejo que a Globo está saindo da modorra, dando oportunidade aos autores de inovarem, de experimentarem, produzindo séries, etc. É bom lembrar que, quando saí da Globo, em 2002, não havia perspectiva para a dramaturgia televisiva. Fora da Globo, apenas o SBT produzia, mas produzia aquelas novelas mexicanas horrorosas. Fui para a Record no começo de 2005, quando essa emissora dava início a um investimento sério e de longo prazo em dramaturgia. Passei 3 anos fora da televisão. O que foi ótimo. Escrevi um romance, uma peça e me dediquei a construir a Associação dos Roteiristas.

Como você trabalha a questão dos ganchos de capítulos, uma vez que a Record não parece ter a mesma organização de horários e de inserção de intervalos comerciais da Globo, por exemplo?
Fazer concorrência à Globo é uma tarefa árdua. Qualquer detalhe se torna importante. O momento de entrada dos comerciais acaba fazendo parte da batalha, tem que ser pensado taticamente na hora em que o programa está indo ao ar. Este é o raciocínio da direção da emissora. Reconheço a dificuldade que ela enfrenta e deixei de reivindicar que os ganchos de comerciais e o gancho final sejam determinados por mim, a priori, no texto. Mudei a forma de escrever o capítulo. Não ponho mais ganchos para os comerciais nem para o final. Simplesmente termino toda e qualquer cena com um gancho. Assim, eles sempre vão ter uma opção.

Você não acredita que a Record se acomodou um pouco no investimento da teledramaturgia de uns quatro anos para cá e não evoluiu o tanto que poderia ter evoluído?
Desde que entrei, em 2005, a Record experimentou uma evolução fantástica. Angariou audiência, respeito do público, dos anunciantes e da imprensa. A meu ver, o maior crescimento se deu nos primeiros três anos, de 2005 a 2007, quando terminei a novela “Vidas Opostas”. O último capítulo dela deu 25 pontos no Ibope, em São Paulo. Um marco. Naquele momento, eu percebi que o próximo passo seria muito mais difícil. E tem sido. A partir dali a tarefa é tirar público diretamente da líder, disputar o primeiro lugar pau a pau. Talvez a emissora pudesse ter evoluído mais. É difícil fazer esta avaliação. De qualquer forma o potencial para isso existe.

Você é o presidente da AR – Associação de Roteiristas. Qual a verdadeira função dessa associação?
A principal função da AR vem enunciada na frase de abertura do nosso Código de Ética, que reproduzo: “É das visões e dos sonhos dos Autores e Roteiristas que a televisão, o cinema e demais tecnologias e meios eletrônicos de difusão audiovisual existentes (e por inventar) adquirem vida. Essas visões e sonhos se materializam no texto escrito, por cuja dignidade e valorização a AR se propõe a lutar”. Vejam o nosso site: www.ar.art.br A AR luta para que o autor-roteirista brasileiro adquira uma identidade profissional própria, independente da emissora de TV em que trabalhe ou do produtor ou diretor para quem escreva. Não basta encher a boca e dizer que é da Globo ou da Record ou trabalha com tal ou qual diretor de cinema. O roteiro é a base de tudo no audiovisual e o profissional que o cria, o roteirista, tem que ser reconhecido pelo seu valor inestimável e insubstituível. Em suma a AR luta pelos interesses profissionais dos roteiristas de todas as mídias.

Já perguntei para o Alcides Nogueira e para a Thelma Guedes. Agora quero discutir diretamente com o presidente (risos). Fale um pouco mais sobre a posição da AR com relação à Classificação Indicativa. E qual sua opinião pessoal sobre o assunto?
Vou começar pela minha posição pessoal. Sou radicalmente contra qualquer interferência, seja governamental ou empresarial, no trabalho do autor-roteirista. Eu não preciso que nenhum executivo da empresa ou burocrata do governo me diga o que é apropriado para o meu público. No caso das novelas, para ficar no meu campo, por força dos contratos, nós eventualmente temos que nos submeter a interferências da empresa. Embora indesejável, isso a gente consegue administrar. Mas com o Estado a coisa é outra, ele não tem que se meter. O fato é que, na equação autor x público x empresa, não sobra lugar para o governo. A meu ver, o Departamento de Classificação Indicativa do Ministério da Justiça deveria ser extinto, pura e simplesmente, bem como aquele manual ridículo que eles inventaram. A posição da AR é parecida com a que expus e está expressa em documento oficial que pode ser lido no nosso site: http://www.ar.art.br/.

Alguma de suas últimas novelas foi prejudicada por conta dessa Classificação Indicativa?
O problema maior da Classificação Indicativa, para quem faz novelas, é que ela serve de pretexto para os executivos interferirem no nosso trabalho. Quando a empresa me pede para escrever uma novela, por exemplo, para as 22 horas, eu sei o que é apropriado para o público daquele horário. Pouco me importa se a classificação vai ser dez, 12, ou 14 anos. Mas a empresa pensa em uma possível reprise em outro horário. E aí o medo da classificação indicativa acentua as paranóias dos executivos.

Como funcionava a Casa de Criação Janete Clair? Por que demorou tanto tempo para o projeto ser aprovado? Qual a validade que ela teve para a renovação de autores?
Quando entrei na Globo, a Casa de Criação já existia. Nunca fui funcionário da Casa de Criação. Basicamente, a Casa fazia uma análise das propostas de dramaturgia apresentadas à Globo, tanto por autores contratados como por gente de fora. E elaborava um parecer que era levado à direção da emissora, vale dizer, Boni, Daniel Filho, aquela gente, que acatava ou não. Se bem me lembro, a Casa também promoveu alguns cursos. Apesar desse papel discreto, a Casa de Criação suscitava uma inveja terrível dentro da empresa. Foi desencadeado um movimento, na surdina, contra o Dias Gomes, que culminou com o fechamento da Casa. A rigor, eu só fiz um trabalho para a Casa de Criação, que foi a sinopse de “Roda de Fogo”. Depois chamaram o Lauro para encabeçar o projeto e eu fiquei como co-autor, embora, com o tempo, a minha real participação nessa novela tenha ficado ofuscada. A Casa de Criação, que eu saiba, não teve tempo de vida suficiente para influenciar na renovação do quadro de autores.

Você dá espaço para novos colaboradores em suas novelas?
Não só nas novelas mas também nos seriados, tenho chamado escritores iniciantes e/ou que estão fora da televisão ou do mercado de trabalho. Acho que abri o caminho profissional pelo menos para alguns deles.

Qual o caminho para a renovação do quadro de autores de novelas?
Não há muito caminho porque a novela é um gênero avaro em termos de mercado de trabaho. Cada novela fica pelo menos sete meses no ar. Neste tempo, apenas um autor trabalha com dois ou três colaboradores. Se você for contar, por ano, em todo o horário nobre da televisão aberta brasileira, de todos os canais, para um público de 180 milhões de pessoas, não trabalham mais de trinta escritores. E como uma novela representa um investimento muito alto, por volta de 50 milhões de reais, as produtoras-emissoras (no Brasil são as mesmas empresas) arriscam o mínimo possivel. O público cativo de telenovelas também é conservador, está acostumado a ver novelas parecidas uma atrás da outra. Daí que os autores também são repetidos. Logo, os jovens que sonham em se tornar novelistas vão ter um caminho muito duro e estreito pela frente. Melhor lutar para que outros formatos, mais generosos em termos de mercado de trabalho, recebam mais investimentos daqui para a frente.

Como é a divisão de trabalho entre você e seus colaboradores?
A sinopse e os primeiros 20 ou 30 capítulos eu escrevo sozinho. Nessa fase, os colaboradores acompanham o trabalho, eventualmente fazendo críticas e/ou sugestões. A partir daí, eu começo a passar algumas cenas para eles dialogarem. É um período de adaptação ao modo de ser dos personagens, a maneira como falam, etc. Por fim, eu passo a escrever apenas a escaleta dos capítulos. A escaleta é um resumo detalhado de todas as cenas do capítulo. Os colaboradores dialogam e eu ainda realizo uma revisão final, antes de mandar para a produção. Já que falamos de colaboradores, vale dizer que trabalhei com uma excelente equipe em “Ribeirão do Tempo”. O Joaquim Assis, a Paula Richard, a Consuelo de Castro e o Eduardo Quental, além da pesquisadora, Irene Bosísio.

Você por muito tempo foi colaborador de Dias Gomes. Como era a sua parceria com o autor? E a divisão do processo de trabalho?
Aqui cabe um esclarecimento. Eu só fui colaborador do Dias em “Roque Santeiro”, minha primeira novela. Por colaboração, claro, entendida a função de dialogar capítulos estruturados pelo autor. Depois de “Roque Santeiro”, eu fui co-autor com ele em alguns trabalhos. Em “Mandala”, ele escreveu a primeira fase, de vinte capítulos. E apenas seis capítulos da segunda fase. A partir do capítulo 26 eu assumi a novela e ele se afastou. Nossa combinação era que ele escreveria até o capítulo 36, mas só foi até o 26. Em “Noivas de Copacabana”, assinamos igualmente o Dias, o Ferreira Gullar e eu. O Dias era o cabeça mas a participação dos três era equivalente. Eu escrevi cinco capítulos, o Gullar cinco e o Dias seis, porque o capítulo final ficou com ele. No remake de “Irmãos Coragem”, o Dias escreveu os prmeiros 20 capítulos e eu fiz o resto. “Dona Flor e Seus Dois Maridos” teve uma divisão similar à de “Noivas”. Foram essas as obras que escrevi com ele.

Dias Gomes era preguiçoso ou não gostava de escrever novelas, escrevia apenas até o capítulo 30 e passava a bola?
Quando eu conheci o Dias Gomes e começamos a trabalhar juntos, ele tinha a idade que eu tenho hoje. A Janete Clair, mulher dele, havia morrido dois anos antes. O Dias ainda se mostrava muito impressionado com este acontecimento. Lembro dele me dizer várias vezes que, na idade em que estava, entregar um ano de vida – e é isto que efetivamente custa ao autor uma novela – à Globo, não era razoável. Eu hoje entendo perfeitamente aquelas palavras. Ele não era preguiçoso, de forma nenhuma. O que ele fazia, naquela altura da sua vida profissional, era tentar se preservar um pouco. Uma aspiração problemática, haja vista o que aconteceu em “Roque Santeiro”.

O que você aprendeu com Dias Gomes que você carrega até hoje na hora de escrever uma novela?
O que eu disse na resposta anterior é uma delas. (risos) É difícil determinar uma lição específica. Quando conheci o Dias, eu já era um dramaturgo formado, tinha peças montadas e premiadas. Com ele eu peguei as especificadades da dramaturgia de televisão. O Dias era um escritor magnífico. A facilidade com que ele definia um personagem, em poucas falas, era espantosa.

Por que existe uma polêmica tão grande em torno da autoria de “Roque Santeiro”?
É uma falsa polêmica. Uma polêmica criada artificialmente. O Dias é o autor de Roque Santeiro. Ponto. Basta analisar os fatos. O Dias escreveu a peça que deu origem à novela, “O Berço do Herói”, na década de 60. Na década de 70, ele escreveu a sinopse de “Roque Santeiro”, baseada na peça, e os 51 primeiros capítulos, quando a novela foi proibida. Em 1985, quando a Globo quis produzir a novela outra vez, o Dias estava dirigindo a Casa de Criação, e passava por aqueles problemas a que me referi acima. Ele então sugeriu que um outro autor tocasse a novela, sob a supervisão dele. A Globo topou e foi chamado o Aguinaldo Silva. Além dele, o Dias chamou a mim e ao Joaquim Assis para colaborar. A única modificação que o Aguinaldo fez na sinopse inicial foi acrescentar um personagem, um Padre progressista, o Padre Albano. Algumas cenas com esse personagem foram interpostas naqueles primeiros 51 capítulos que o Dias já tinha escrito. Foi a única modificação que esses capítulos sofreram. Mesmo assim, como os capítulos ficaram muito grandes, as novas cenas foram cortadas na hora de ir para o ar. Em resumo. Os primeiros 50 capítulos que foram ao ar em 85 eram exatamente aqueles que o Dias escreveu em 75. Muito antes deles se esgotarem, a novela já era um extraordinário sucesso, já havia se tornado um mito. Capítulos estruturados pelo Aguinaldo e escritos por ele ou por mim ou pelo Joaquim só depois do capítulo 50. Nesta altura, o Dias tinha feito uma viagem à Europa. E o Aguinaldo começou a dar entrevistas como o autor da novela. E aí se iniciou o conflito que terminaria com o afastamento do Aguinaldo por volta do capítulo 160. O Dias reassumiu e a novela continou até o capítulo 214. Quer dizer que a polêmica em torno da autoria é uma distorção. Quem cria a sinopse, inventa os personagens e escreve os 50 primeiros capítulos é o autor indiscutível de uma novela. O Dias seria o autor de “Roque Santeiro” mesmo se não tivesse supervisionado nem escrito mais uma linha depois dos 51 capítulos iniciais.

Quais são suas fontes de inspiração na hora do processo criativo?
Sempre vivi mais num mundo criado pela minha imaginação do que no mundo real. Logo, a primeira fonte é minha imaginação. O resto vem do que eu vivi, do que li e do enfoque irônico que tenho da vida.

Como surgem as idéias para uma nova novela? “Ribeirão do Tempo”, por exemplo, surgiu a partir de um personagem, de um tema ou de uma trama?
“Ribeirão do Tempo” foi uma novela em grande parte feita no improviso. Tive pouco tempo para elaborar a sinopse. A novela me foi encomendada de urgência em julho de 2009, para estrear em fevereiro de 2010, um tempo extremamente curto. A estréia acabou sendo adiada para maio, o que não mudou nada, porque a essa altura eu já havia escrito uns 15 capítulos, ou seja, o jogo do improviso já estava feito. “Ribeirão” foi construída a partir de três idéias: uma antiga sinopse que eu havia feito para o horário das sete, sobre esportes radicais; um romance policial inacabado que eu tinha na gaveta e uma inspiração literária, o romance “Os Demônios”, de Dostoiévski, autor a quem venero. Devo admitir que esta fusão improvável, tecida com um olhar irônico, resultou numa novela um tanto insólita, mas que acabou funcionando muito bem.

A questão política é muito presente em todas as suas novelas. Por quê?
Sempre me interessei por política, desde a adolescência, embora ninguém da minha família fosse ligado nisso. A época, os anos sessenta, tinha um forte apelo político. Assim que entrei na faculdade, me filiei ao Partido Comunista. Tinha ido estudar Letras, porque meu sonho era ser escritor. Mas a política exercia um atração irresistível sobre mim. Durante um certo tempo, fui estudante profissional. Eu tinha sido suspenso por um ano da faculdade e o Partido me pagava um salário para me dedicar exclusivamente à agitação política pelo Brasil afora. Depois me enviaram para algumas missões no Leste Europeu. Aí conheci o comunismo de perto e me desiludi para o resto da vida. Mas o interesse pela política se manteve, assim como o fascínio pela revolução. Minha visão de mundo inclui o dado político, não posso evitar. Penso politicamente. Quando imagino uma novela, o dado político vai estar presente, porque faz parte de mim.

“Vidas Opostas” é considerada um divisor de águas na teledramaturgia nacional. Ao que você atribui o sucesso da novela?
“Vidas Opostas” fez sucesso por várias razões. A primeira delas porque era uma excelente novela, modéstia à parte. Depois porque trouxe de volta um gênero há muito tempo deixado de lado nas novelas, o que o Dias Gomes chamava de realismo crítico. Em parte, isto significa ter o povo como um dos protagonistas da trama. Metade dos personagens de “Vidas Opostas” era de favelados. E aquela gente formava um personagem coletivo de extraordinária força. Vamos deixar claro, não estou falando de realismo socialista, mas de realismo crítico. Porque eu não estava pregando revolução nenhuma, nem afirmando superioridade de uma classe sobre as demais. Mas trazendo o povo para dentro da forma mais popular de dramaturgia do país, a telenovela, onde ele só aparecia de forma folclorica ou casual. Todo mundo sabe que o Brasil tem na exclusão social sua característica mais marcante. Característica que as telenovelas em geral reafirmam. Ou seja, “Vidas Opostas” fugia da tradição do bom-mocismo didático, do maniqueísmo e do universo de classe média que predomina nas obras do gênero. Isso atraiu a atenção do público.

“Ribeirão do Tempo” foi uma novela que demorou um pouco a consolidar a audiência. Por qual motivo?
Desde o início eu tinha consciência de que seria uma novela difícil. Minha opção narrativa foi construir o universo ficcional daquela cidade devagar, sem truques, deixando os personagens aflorarem naturalmente. Acrescida a isso, há a construção irônica, que exige do espectador um pouco de atenção e reflexão a mais do que normalmente se dedica a uma telenovela. Para curtir esse tipo de obra, o público tem que se colocar num certo distanciamento crítico, tem que partilhar com o autor da maneira como a história é engendrada, e não apenas se envolver emocionalmente nas tramas.

A novela está próxima do fim. Missão cumprida? Alguma coisa não aconteceu conforme o planejado inicialmente?
No começo eu tive receio de não conseguir criar o universo ficcional que estava na minha intuição. Mas consegui chegar lá. Foi uma novela extremamente trabalhosa, porque na verdade eu lidava com um enorme personagem coletivo, os habitantes da cidade de Ribeirão do Tempo. Tinha que ter sempre em consideração o conjunto da população, as histórias tinham que avançar concomitantemente. Exige esforço fazer isso. Acho que tudo aconteceu dentro do previsto, exceto o tempo de duração, onze meses e quinze dias, que foi além do que eu contava.

Há muita interferência por parte das emissoras na hora do processo criativo do autor? Que tipo de interferência você já sofreu?
As emissoras não interferem no sentido de determinar rumos para as histórias. Isso é um mito totalmente equivocado. A começar pelo fato de que não há na direção das emissoras ninguém com capacidade dramatúrgica para se meter numa novela. A obra é do autor, em termos absolutos. Nós propomos a idéia inicial e, se aceita, desenvolvemos a história com autonomia. Eventualmente há pedidos para atenuar algum aspecto, por exemplo, evitar muitos palavrões ou contornar uma situação de sexo explícito. De um modo geral, são solicitações irrelevantes, que não alteram o rumo da história. Mesmo porque os autores sabem o que é apropriado para o seu público, como eu já disse. Ninguém vai botar uma suruba no horário das sete, como alguns alucinados afirmam que aconteceria, se não houvesse vigilância governamental.

“Mandala” foi uma novela bastante polêmica, uma adaptação de “Édipo-Rei”, falava de incesto. Houve censura e mudança de rumo na história?
“Mandala” foi um caso extremo. A proposta do Dias, de adaptar “Édipo Rei” era extremamente ousada. Foi a experiência profissional mais difícil da minha vida e atrapalhou muito a minha carreira. Mas isso não vem ao caso agora. A história de um filho que mata o pai e se casa com a mãe, numa novela, vamos convir, era complicada de levar adiante. Naquela época ainda havia a Censura Federal. Mas independente da censura, quando foi chegando a hora do filho transar com a mãe, levantou-se uma celeuma gigantesca na opinião pública. A novela, a esta altura, estava na minha mão. Eu é que tive que decidir se fazia ou não a transa. Aí o Daniel Filho, que era o diretor de criação, mandou entregar na minha casa uma carta secreta do Boni para a Censura Federal, datada de antes da novela estrear, se comprometendo pela empresa de que não aconteceria a relação mãe-filho. Veja bem, nenhum dos dois teve coragem de falar comigo diretamente, nem por telefone. Mandaram deixar a carta na minha casa. Eu liguei para o Dias e ele disse que não tinha conhecimento da carta. Resumindo, a bomba ficou na minha mão. Não sei o que aconteceria se eu tivesse escrito a cena. Acontece que, independentemente da carta e de toda a celeuma, eu já tinha decidido não fazer a trepada do filho com a mãe, não por razões morais, mas porque a novela se tornaria insustentável, dramaturgicamente, a partir daí. Esta é apenas a parte mais notável da série de problemas daquela novela. Um dia conto detalhadamente tudo que aconteceu.

Por que o diretor Luiz Fernando Carvalho foi afastado do remake de “Irmãos Coragem”?
O Luiz Fernando foi muito deselegante com o Dias em todo o processo da novela. Fez uma direção da cabeça dele, sem consultar o Dias e mesmo se esquivando de dar qualquer explicação. Quando os capítulos foram ao ar, pareciam chumbo, tamanho o peso, por culpa exclusiva da direção. A audiência foi lá embaixo. O Dias encabeçou a novela até o capítulo 20, como combinado, e passou para mim. Na passagem de um para o outro, o Boni afastou o Luiz Fernando. Então disseram que fui eu que botei o Luiz Fernando para fora, mas não foi bem assim.

Você gosta de escrever novelas ou acha o processo desgastante demais?
Novela tem suas gratificações mas é muito desgastante, de fato. Quando vai bem, ainda é mais suportável. Mas quando vai mal... É dureza. O problema é que nossa televisão é viciada em novela. Durante décadas, a Globo ocupou todo o horário nobre com novelas. E hoje é muito difícil fugir desse padrão. A concorrência não tem alternativa senão fazer novelas para enfrentar as novelas globais. E por aí vai. Não que eu seja contra as novelas, mas acho que é hora de termos também outros formatos. Vai ser bom para todo mundo.

Os números de audiência das telenovelas já não são mais os mesmos. Você acredita que exista uma crise no gênero ou o processo de medição está ultrapassado?
Há vários fatores concorrendo para que a audiência das novelas não seja mais a mesma. O primeiro deles é que, embora a Globo ainda seja predominante, hoje se vê obrigada a enfrentar uma concorrência mais estruturada. Não é mais tão fácil dar 40, 45 pontos. A coisa se divide. Além disso, há a concorrência das outras mídias. E acredito também que o rame-rame, depois de todas essas décadas, desperte menos interesse no público.

Você não acha que os nossos seriados têm cara de novela? O que fazer para mudar isso?
Eu fiz um seriado, “A Lei e o Crime”, com 21 episódios, que não tinha cara de novela. O que houve foram algumas críticas equivocadas. Porque eu botei uma delegada que tinha raízes na nobreza, acharam que isso era ranço de novela, sem perceber a ironia que estava por trás da construção de uma personagem que iria enfrentar traficantes na favela. “9 mm” também não tinha cara de novela. De qualquer forma, você tem razão em levantar a questão da influência da novela em toda nossa dramaturgia, porque a novela tem uma presença acachapante no Brasil. A gente só vai se livrar dela produzindo mais e mais seriados. Porque precisa de um processo de aprendizado, não só dos autores, como dos diretores, dos atores, dá técnica, etc. E até do público.

Tem planos para o cinema?
Tenho o projeto de um filme a partir do seriado “A Lei e o Crime”. Já era para ter sido produzido, mas uma série de questões burocráticas emperraram o processo. Deve ser feito até o final deste ano. Fora esse, tenho outros projetos que pretendo tocar agora que a novela acabou.

O que achou do blog? Tem algum recado para os nossos leitores?
Um blog que se propõe a fazer crítica de teledramaturgia, de forma séria e consistente, é extremamente oportuno. Porque, a rigor, não se tem crítica de teledramaturgia no Brasil. Salvo honrosas exceções, o que se vê por aí é o que eu chamo de crítica marca “silvo”, aquela que só serve para lustrar a prata da casa. Mais nada. “Ribeirão do Tempo” careceu de uma crítica aprofundada, favorável ou desfavorável, não importa. Houve algumas no início, feitas em cima do primeiro capítulo, inteiramente equivocadas, supondo desdobramentos convencionais para a trama, e que, claro, foram desmoralizadas no desenrolar da novela. Depois, quase nada. A grande imprensa me brindou com um silêncio ostensivo. Não sei até que ponto foi um boicote – talvez pela sátira da esquerda, num país onde todo mundo se diz de esquerda – ou um problema de falta de ferramentas conceituais para analisar uma obra fora do padrão habitual. O blog “Tv Crítica” pode contar com todo o meu apoio, mesmo que me esculhambem. Se o fizerem com uma análise fundamentada da minha dramaturgia, tudo bem.

(por Beatriz Villar)

3 comentários:

  1. Excelente a entrevista. Parabéns à equipe do blog.

    Eu, como "jovem" roteirista, tenho aprendido muito com as lições ensinadas pelos autores veteranos aqui entrevistados.

    Espero que continuem com este trabalho de qualidade.

    Abraços.

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  2. Gostei da entrevista. Pude observar pontos muito importantes, e sempre é bom aprendemos com autores mais experientes.

    Continuem fazendo o bom trabalho..., que sempre fazem com bastante qualidade.

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  3. Esse é um dos autores que eu mais admiro pela sua competencia, profissionalismo e ética. Coisas que certos autores deixa a desejar.

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