sexta-feira, 1 de abril de 2011

A pergunta que não quer calar

A reprise da novela “Vale Tudo” pelo canal Viva já era um dourado sonho dos telemaníacos. Uma trama forte, com personagens bastante reais e tramas maravilhosas que, por si só, já fariam o sucesso de qualquer novela. Porém, há algo de estranho na calorosa recepção da reprise de Vale Tudo. Depois de 23 anos da exibição original, parece-me que a pergunta que norteou a novela em 1988 continua viva e, pior, adquiriu contornos mais cruéis.

Talvez para um jovem de 20 anos, palavras e siglas como overnight, OTN e gatilho sejam meros termos de um passado ao qual não pertenceram. Porém, atitudes como a de Marco Aurélio (Reginaldo Faria), Odete Roitman (Beatriz Segall) e César (Carlos Alberto Ricelli) – apenas para ficar nos mais óbvios, por enquanto – são vistas diariamente nos jornais, no ambiente empresarial e, às vezes, até na própria família.

Comecemos por nossa tão querida Maria de Fátima (Glória Pires). Para conseguir alcançar dinheiro, poder e fama, fez de um tudo: iniciou uma carreira não muito promissora de modelo, vendeu seu caráter (que já não era muito) para quem quisesse comprar, tentou manipular todos à sua volta, chegou a vender seu filho para um casal estrangeiro... Pois muito bem: agora abram os jornais ou saiam às ruas. Duvido que alguém não encontrará algumas “Marias de Fátimas” espalhadas por aí. E o pior é que estas meninas ainda recebem hoje em dia a etiqueta de “batalhadoras”.

Com Marco Aurélio, não há muita diferença. Por debaixo de uma imagem de administrador arrojado, influente, a personificação do “homem de negócios”, há um sujeito baixo, amoral, preconceituoso (do tempo em que se podia discutir preconceitos às claras), capaz dos esquemas mais sórdidos para lucrar. Em cena ilustrativa, dias desses Leila (Cássia Kiss) disse a Raquel (Regina Duarte) que o que Marco Aurélio fazia em seu trabalho poderia assustá-las, pois não são do métier, mas que, entre administradores, estas práticas são bastante comuns. Reconheceu alguém nesta descrição do personagem? Não há uma resposta única para esta pergunta já que, diariamente, podemos ver empresários recebendo e negociando propinas. Porém, atualmente, não fogem mais do país dando-lhe uma banana. Como são pessoas patriotas, amantes de seu país, filmam tudo para, em um momento oportuno (e nesta lacuna cabe tanta coisa...) divulgar as imagens do próprio suborno que recebeu. Recebeu, pois até hoje não soube de um só empresário que tivesse denunciado estes esquemas de corrupção e, depois, tivesse aparecido com o dinheiro para devolvê-lo ao contribuinte...

A próxima de minha lista é uma inusitada presença: Aldeíde Candeias (Lília Cabral). De simples e cafona secretária da TCA, moradora do bairro do Catete, a personagem passa a perseguir a todo custo o sonho de ser famosa após receber uma proveitosa herança. Em quê, para quê, por quê? Pelo simples fato de ser fa-mo-sa, pois não sabe fazer nada, nunca foi notável em coisa alguma. Há, na novela, um rápido paralelo entre a fama de Aldeíde e a tentativa de Daniela (Paula Lavigne) para deixar de ser anônima. Esta é o termo correto: “deixar de ser anônimo”, passar a buscar a fama como marca de distinção no meio da multidão. Aliás, há uma cena em que Raquel (Regina Duarte) pondera a Daniela que seu sucesso como empresária de médio porte só veio depois de muito trabalho e dedicação quase obsessiva. Talvez em 88 este mote tenha sido encarado como algo de novidade. Muito bem, mas estamos em 2011 e esta tentativa de alavancar uma pessoa à tão surrada categoria de “celebridade” é tão banal que, para uma pessoa se destacar como a futura merecedora dos quinze minutos de fama (se bem que houve um considerável aumento de tempo desde Andy Warhol), ela precisa apelar. Não basta mais ser flagrada sem calcinha: tem que andar sem calcinha e de pernas abertas para garantir um bom ângulo para as fotos...

Aqui me sinto obrigado a abrir um parêntesis. Infelizmente, vale comentar que a trama de “Vale Tudo”, em comparação às atuais, torna-se bastante ousada e sem receio de tocar nas feridas. Atualmente, a pretexto de cativar a audiência sem desgostá-la, as novelas lidam com estes temas sempre com muitos dedos, com muito cuidado, cercados de frescuras. Como a televisão é reflexo de seu público, só me resta chegar à seguinte conclusão: o público encaretou, ficou mais conservador de 1988 para cá. Regrediu. Ponto negativo para a teledramaturgia nacional, pois perdeu um belíssimo espaço para a discussão de assuntos que movimentam a sociedade e são de interesse de todos. Parêntesis fechado!

Na contramão de tudo isso, encontramos, por exemplo, Audálio (Pedro Paulo Rangel), um sujeito positivo, trabalhador, honesto, que confia nas pessoas, tudo tão bom, tudo tão ético... Ao ponto de receber o ingrato apelido de Poliana: aquele que consegue ser feliz até nos piores momentos. Nada mais surreal diante de tamanho choque de realidade.

Por este rápido painel, pode-se perceber que um dos grandes motivos para a reprise da novela “Vale Tudo” (e um grande trunfo, mesmo sem os autores terem muita consciência disso na época, acredito eu) é que as décadas passaram, viramos o milênio e a única coisa que mudou entre Sarney e Dilma foram as ombreiras e as saias balonês. A falta de ética, a lei de Gerson, a inexistência de escrúpulos, o vale tudo propriamente dito continua tão presente nos personagens com que convivemos no dia a dia que chega a se tornar um forte arquétipo em nossa atual sociedade, assim como a mulher independente ou o político paternalista. Por isso, mais do que merecido sucesso. O Brasil que se perguntava em 88 se valia a pena ser honesto, hoje varreu a pergunta para debaixo do tapete e só a tira de lá quando é politicamente correto fazê-lo.

Que o diga o vendedor de bebidas em um quiosque do Rio de Janeiro flagrado esta semana por uma equipe do Jornal Hoje (em uma fantástica matéria de Renata Capucci) enquanto vendia seus produtos com três preços: um para o cliente carioca, outro (pouco mais caro) para turistas brasileiros e, por fim, um terceiro exorbitante aumento para quem é turista estrangeiro...

(por Jordão Amaral)

Um comentário:

  1. Jordão meu caro, tenho, infelizmente, que concordar contigo. "VALE TUDO" para mim é muito melhor e realista do que muitas novelinhas que a Globo está fazendo hoje em dia. O público que se diz muitas vezes mais "moderno" está pior e mais caretas do que os nossos avós. Muita gente anda dizendo por aí que em 2012 haverá uma grande mudança na espécie humana, só espero que essa mudança seja para melhor!

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